sábado, 12 de janeiro de 2013

Louis-Ferdinand Céline - Vida e Obra de Semmelweis (primeiro capítulo)

Mirabeau gritava tão alto que Versailles teve medo. Desde a Queda do Império Romano, jamais uma tempestade dessas se abatera sobre os homens, as paixões em vagas horrendas elevavam-se até o céu. A força e o entusiasmo de vinte povos surgiam na Europa, desventrando-a. Por todo lado eram só tumultos de criaturas e coisas. Aqui, tormentas de interesses, de vergonhas e de orgulho; ali, conflitos obscuros, impenetráveis; mais adiante, heroísmos sublimes. Todas as possibilidades humanas misturadas, desenfreadas, furiosas, ávidas de impossível percorriam os caminhos e os lamaçais do mundo. A morte uivava na esquina sangrenta de suas legiões desparatadas; do Nilo a Estocolmo e da Vendéia até a Rússia, cem exércitos invocaram ao mesmo tempo cem razões de serem selvagens. As fronteiras devastadas, fundadas num imenso reino de Frenesi, os homens querendo progresso e o progresso querendo homens, eis o que foram essas gigantescas festanças. A humanidade se entediava, queimou alguns Deuses, mudou de roupa e pagou à História com algumas novas glórias.

E depois, serenada a tormenta, enterradas as grandes esperanças por mais alguns séculos, cada uma dessas fúrias que partira "súbita" para a Bastilha voltou "cidadã" e retornou às suas insignificâncias, espiando o vizinho, dando de beber ao seu cavalo, chocando seus vícios e suas virtudes no saco de pele pálida que Deus nos deu.

Em 1793, um Rei pagou o pato.
Mais exatamente, foi sacrificado na place de Greve. Do talho de seu pescoço jorrou uma sensação nova: a Igualdade. Todo o mundo quis um pouco, foi um furor. O Homicídio é uma função cotidiana dos povos, mas, pelo menos na França, o Regicídio parecia novidade. Ousou-se. Ninguém queria dizer, mas a Besta encontrava-se entre nós, aos pés dos tribunais, nos trapeados da guilhotina, de boca escancarada. Foi preciso lhe dar uma ocupação. A Besta quis saber quantos nobres vale o rei. Acharam que a Besta era genial.
E em matéria de carnificina foi uma escalada fantástica.
 Primeiro mataram em nome da Razão, por princípios ainda a definir. Os melhores gastaram muito talento para unir a assassínio à justiça. Conseguiram a duras penas. Não conseguiram. Mas, no fundo, que importava? A malta queria destruir e bastava isso. Assim como o apaixonado primeiro afaga a carne que
cobiça e pensa em demorar muito tempo nas confições, e depois sem querer se apressa. Assim a Europa desejava afogar numa terrível orgia os séculos que haviam educado. Era um desejo ainda mais premente do que ela imaginava. Não convém irritar as multidões ardorosas, como tampouco os leões famintos. Agora, dispensava-se, pois, a busca de desculpas para a guilhotina. Mecanicamente, uma seita inteira foi designada, morta, retalhada, como carne, mais a alma.

A flor de uma época foi cortada miudinha. Isso agradou, por um instante.
Poderiam ter parado por aí, mas cem paixões que bocejavam de tédio diante da lentidão dessa minudência, numa noite de horror, derrubaram o cadafalso. Com isso, vinte raças se precipitaram num delírio medonho, vinte povos conjugados, misturados, hostis, pretos ou brancos, louros e morenos, dispararam rumo a conquista de um Ideal.
Empurrados, machucados, sustentados por frases, guiados pela fome, possuídos pela morte, eles invadiram, saquearam, conquistaram a cada dia um reino inútil que outros perderiam no dia seguinte. Viram-nos passar sob todos os arcos do mundo, um após outro, numa ronda ridícula e deslumbrante, arremetendo aqui, derrotados ali, enganados por todo canto, despachados sem cessar do Desconhecido ao Nada, tão contentes de morrer quanto de viver. No curso desses anos monstruosos em que o sangue flui, em que a vida esguicha e se dissolve em mil peitos ao mesmo tempo, em que os lombos são ceifados e esmagados na guerra, tal como as uvas no lagar, precisa-se de um macho.

Aos primeiros relâmpagos dessa imensa procela, Napoleão pegou a Europa e, por bem ou por mal,  conservou-a quinze anos. Enquanto seu gênio durou, a fúria dos povos pareceu organizar-se, a própria tempestade recebeu ordens suas. Lentamente, voltou-se a acreditar no bom tempo, na paz.
Depois, desejaram-na, amaram-na, terminaram por adorar a paz, como haviam adorado a morte, quinze anos antes. Não custou a que começassem a chorar a desgraça das pombinhas com lágrimas tão reais, tão sinceras quanto as injúrias com que cobriam, na véspera, a carroça dos condenados. Só quiseram saber de doçuras e ternuras. Proclamaram-se sagrados os esposos afetuosos e as mães zelosas com tantas exclamações quantas foram necessárias para decapitar a Rainha. 
O mundo queria esquecer. Esqueceu. E Napoleão, que insistia em viver, foi encerrado numa ilha junto com um câncer.
Os poetas reorganizaram suas coortes alarmadas, cem pieguices foram ditas num dia de primavera para a volúpia das almas sensíveis. Criava-se com o mesmo excesso com que se destruíra. Uma brisa de ternura afagou os túmulos incontáveis. O sininho nunca mais saiu do pescoço dos carneirinhos. Em todosos riachos murmuraram-se versos. Bastava que a margarida entreabrisse para que uma senhorita sentimental de verdade se desmanchasse em lágrimas. E não mais que isso para que um homem de bem por ela se apaixonasse pelo resto da vida.

Foi por essa época de convalescença, numa das cidades mais coloridas do mundo, que nasceu Ignace-Philippe Semmelweis (Ignác-Fülöp Semmelweis), quarto filho de um quitandeiro de Budapeste sobre o Danúbio, na ladeira da igreja Santo Estevão, no auge do verão, exatamente em 18 de julho de 1818.

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