«Eu, as minhas bengalas, a Lili, o Bébert, aqui estamos nós feitos turistas... à procura de um hotel!... esta cidade já sofreu bastante... tantos buracos e calçadas levantadas!... engraçado, não se ouvem os aviões... já não se interessam por Berlim?... eu não percebia, mas a pouco e pouco dei-me conta... era uma cidade só de cenários... ruas inteiras de fachadas, os interiores tinham ruído, afundados nos buracos... não tudo, mas quase... parece que em Hiroshima está tudo bem mais limpo, ceifado rente... a limpeza através dos bombardeamentos que também é uma ciência, ainda não estava afinada... ali, os dois lados da rua ainda davam uma ilusão... as portadas fechadas... e depois também era curioso que nos passeios, todos os escombros, as vigas, as telhas, as chaminés estavam cuidadosamente empilhados... não a monte, de qualquer maneira... cada casa tinha diante da porta os seus destroços, que atingiam a altura de um, dois andares... e destroços numerados!... se amanhã a guerra acabasse, de repente, não precisariam de oito dias para repor tudo no seu lugar... em Hiroshima já não conseguiriam fazê-lo, o progresso tem o seu lado mau... ali, em Berlim, oito dias, e voltavam a pôr tudo de pé!... as traves, os algerozes, cada telha, já identificados com números pintados a amarelo e vermelho... assim se via um povo com um sentido de ordem inato... a casa completamente morta, uma grande cratera, e todas as tripas e goelas de fora, a pele, o coração, os ossos, mas apesar disso tudo bem acondicionado, no passeio... como um animal no matadouro que, como por magia, recupere as vísceras todas! e hop!... parta a galope! se Paris tivesse sido destruída você havia de ver as equipas de reconstrução!... o que iam fazer das telhas, vigas, algerozes!... talvez duas, três barricadas?... se tanto!... ali naquela triste Berlim, eu via velhos e velhas da minha idade e mais ainda, já nos seus setenta, oitenta anos... e até cegos... totalmente dedicados ao trabalho... a levarem tudo para o passeio, a fazerem pilhas à frente das fachadas, a numerarem... os tijolos, aqui! telhas amarelas, ali!... cacos de vidro num buraco, tudo!... nada deixado ao deus dará!... com chuva, sol, ou neve, Berlim nunca fez rir ninguém!... um céu que nada consegue alegrar, nunca... logo à partida de Nancy, nada mais há a esperar... só dissabores e mais dissabores, graves, enormes fadigas, ataques de tristeza, guerras de sete anos... de mil anos... sempre!... olhe as caras deles!... até as águas!... o Spree... esse Estige dos teutões... como ele corre, inexorável, lento... tão lodoso, escuro... só de olhar para ele, vários povos perderem o pio, a vontade de rir... nós, a Lili, eu, o Bébert, olhávamo-lo do parapeito... uma senhora, uma alemã aproxima-se... quer falar connosco... é amiga dos animais... quer fazer festas ao Bébert... ele tem a cabeça fora do saco... olha como nós para o Spree... esta senhora pergunta-nos de onde vimos... de Paris!... somos "refugiados"... é uma mulher de coração, percebe que estamos em dificuldades..."Oh, os senhores vão ter grandes problemas com o vosso gato!" Eu não sabia, ela informa-me de que os animais domésticos, gatos, cães, "não-de-raça" e "não-reprodutores" são considerados "inúteis"... as leis do Reich determinam que sejam entregues o mais brevemente possível à "Sociedade Protectora"." Tomem atenção nos hotéis! com um pretexto ou outro o delegado deles passa... para uma pretensa "visita veterinária"... e vocês nunca mais vêem o vosso gato!... os SS treinam-se com eles, arrancam-lhes os olhos!... "Agora estamos prevenidos... agradeço-lhe... teremos cuidado com os hotéis!...»
Tradução de Clara Alvarez.