sábado, 23 de novembro de 2013

Resumo de "Voyage au bout de la nuit" para a editora Gallimard

(Antes desta publicação, Céline tentou vender o manuscrito de "Voyage au bout de la nuit" para um casal de editores. Ele escreveu o seguinte resumo do livro para a prestigiada editora Gallimard, mas antes que eles pudessem concordar em publicá-lo ele já havia aceitado a oferta de Denoël et Steele).

Para NRF, pouco antes de 14 abril de 1932

Monsieur:
 

Envio o meu manuscrito "Voyage au bout de la nuit" (cinco anos de trabalho).

Eu ficaria particularmente grato se você me respondesse o mais rápido possível se afinal quer publicá-lo e em quais condições.


Você me pediu para lhe fornecer um resumo deste livro. Na verdade, é uma tarefa bizarra que você me pede para realizar e eu nunca teria pensado nisso. Pode-se dizer que estava na hora e que eu fiz. Eu não sei por que, mas não me sinto capaz de. (Um pouco como os mergulhadores que vemos em filmes que espirram água para fora após emergir...) Tentarei fazê-lo mas sem ser extravagante. Não acho que o meu resumo lhe fará querer ler o livro.

Na verdade, esta "Viagem ao fim da Noite" é um conto romanceado escrito de uma forma singular, do qual não há muitos exemplos na literatura em geral. Esta não era a maneira que eu queria. Mas é assim que vai. É um tipo de literatura, sinfonia emocional mais do que um romance real. A armadilha do gênero é o tédio. Eu não acho que a minha coisa seja o tédio. Do ponto de vista emocional este conto é parecido com o que temos - ou deveríamos ter - na música. Ele permanece na borda de emoções e palavras, de representações precisas, exceto nos momentos acentuados, que são impiedosamente precisos.

A partir do qual flui uma série de desvios que, pouco a pouco, juntam-se com o tema e  finalmente cantam como numa composição musical. Tudo isso é muito pretensioso e pior do que ridículo, se o trabalho falhou em seu propósito. Deixo isso para você julgar. De minha parte, é um sucesso. Esta é a maneira que eu vejo as pessoas e as coisas. Pior para eles...

A intriga é ao mesmo tempo complexa e simples. Também pertence ao gênero lírico. (Esta não é uma recomendação!) É um grande afresco de lirismo populista, do comunismo com a alma, e assim travesso, cheio de vida. 

O conto começa na Place Clichy, no início da guerra e termina 15 anos depois, no festival Clichy. 700 páginas de viagens ao redor do mundo, homens e a noite, e amor, especialmente o amor, que eu caço, ruína, e que sai desta cansado, deflacionado, derrotado ... Crime, delírio, Dostoevskyismo: há algo de tudo na minha coisa, para aprender e se divertir com. 

Os Fatos 

Robinson, meu amigo, algum tipo de trabalhodor, vai para a guerra (eu penso a guerra em seu lugar [1]), ele foge de batalhas de uma forma ou de outra ... ele vai para a África tropical ... então a América ... descrições ... descrições ... sensações ... em todos os lugares e sempre ele está doente à vontade (romantismo, o mal do século XXI [2]).
 Confuso, ele retorna para a França ... ele vai com a viagem, sendo explorado por onde passa e com o morrer de inibições e de fome. Ele é um proletário moderno. Ele vai decidir matar uma mulher idosa para que ele possa finalmente ter uma pequena quantidade de capital, isto é, o ponto de partida da liberdade. Ele não consegue matá-la, a velha senhora, na primeira vez.

Ele fere a si mesmo. Ele temporariamente cega a si mesmo. Uma vez que a família da velha senhora estava em conluio com ele, todos eles são enviados para o sul da França, a fim de abafar o caso. É a velha senhora que agora cuida dele. No sul, eles se envolvem numa estranha forma de comércio. Eles exibem múmias em uma adega (isto dá dinheiro).
Robinson volta a enxergar. Ele fica noivo de uma jovem de Toulouse. Ele vai cair na vida normal. Mas, para que a vida seja normal, você tem que ter algum capital. E assim ele novamente tem a ideia de derrubar a velha. E desta vez ele não falha. Ela é boa morta. Ele e sua futura esposa irão herdar. Felicidade burguesa é esperada. Mas algo o impede de se estabelecer numa felicidade burguesa, no amor e na segurança material. Algo! Ah! Ah! E isso é algo que toda a novela! Atenção! Ele foge de sua noiva e da felicidade. Ela o persegue. Ela faz uma cena após outra. Cenas de ciúmes. Ela é a mulher eterna que enfrenta o novo homem ... Ela o mata.

Tudo isso é perfeitamente apresentado. Sob nenhuma condição quero que este assunto seja roubado de mim. Isto é alimento para um século de literatura. É o Prix Goncourt - 1932, em uma poltrona para o editor feliz, que vai agarrar essa obra inigualável [3], este momento capital da natureza humana ...

Com os meus melhores cumprimentos

Louis Destouches

[1] No manuscrito original os personagens de Robinson e Bardamu foram invertidos.

[2] Typo do século XX.

[3] O romance fracassou no prêmio Goncourt.

(traduzido por Mitch Abidor (Francês ao Inglês)


Fonte: http://chiseler.org/post/63315115433/celine-on-journey-to-the-end-of-the-night
 
 

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Pessoas idolatram a Merda

Pessoas sempre idolatraram a merda, seja na música, na pintura, na escrita, na guerra, ou no palco. Impostura é a Deusa da Multidão. Se eu tivesse nascido um ditador (que Deus me perdoe) algumas coisas interessantes aconteceriam. Eu sei o que as pessoas precisam, e não é uma revolução, não são dez revoluções... O que precisam é que forcemos água e silêncio neles! Deixem todos vomitarem o tanto de álcool que beberam desde 1793 e os discursos que eles engoliram...Como se eles fossem irremediáveis! Eles estão cheios de Imundície Maçônica e Vinho, suas entranhas estão em tal estado de Jewification e cirrose que caem aos pedaços pelas casas judias na primeira erupção de um alto-falante.

Durante minha ditadura eu serei uma dor na bunda da burguesia nativa, eu lhes ensinarei boas maneiras, tanto é que lamentarão a Comuna, os Judeus, os Incas, os Hunos, e os suicídio de bestas selvagens. Mas a nossa Burguesia é o passado! Eles dizem quase nada... Eles lançaram as bases para os Judeus, que na insegurança aniquilatória, cagam-se de medo. Eles não têm uma ideia de qual caminho percorrer, eles estão com tanta pressa para trair, para barganhar, que temem não trair o suficiente.
Eles se pintam como abissínios, eles viram as narinas de dentro para fora para que os kikes coloque-os de volta onde eles estavam, ficam com eles só mais um pouquinho, pois não irão privá-los de suas mansões sob a nova ordem. Eles nasceram na traição e lá morrerão, no fracasso e na negociação...  Eu sempre me perguntei o que há de mais nojento, uma judeu achatado e caído ou uma burguesia francesa em pé... o que é mais revoltante? Eu realmente não posso decidir.

De “Bagatelles pour un massacre”
Translated by Mitch Abidor

http://chiseler.org/post/65042695538/peoples-idolize-shit-louis-ferdinand-celine

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Élie Faure - L.F. Céline: 1934

Fonte: Choix de Lettres de Louis-Ferdinand Céline, edited by Henri Godard and Jean-Paul Louis. Paris, Bibliotheque de la Pléaide, 2009;
Traduzido desde: marxists.org by Mitchell Abidor;
CopyLeft: Creative Commons (Attribute & ShareAlike) marxists.org 2012.

(Após os tumultos fascistas de 06 de fevereiro de 1934, o romancista Louis-Ferdinand Céline foi convocado pelo historiador de arte Élie Faure para denunciar a ameaça da direita vigente da época. Ele enviou para Faure duas respostas ao seu pedido.)



Nature morte aux homards, Eugène Delacroix, 1827. Musée du Louvre. "Beau comme la rencontre fortuite sur une table de dissection d'une machine à coudre et d'un parapluie!" Lautréamont, chant VI de Les Chants de Maldoror (a associação é de Aragon) 

Março 18, 1934
Caro Amigo:

Você sabe o quanto eu o admiro, como entusiasta que sou, como venero tudo o que você tem pensado, nos dado, e escrito. Leio atentamente e aprendo muito com os seus textos. Ainda leio e sempre lerei. Você é um dos meus professores raros, e, sem dúvida, o mais próximo, o mais direto. Não será esta a questão quando eu me rebelar contra as suas diretrizes atuais.
Eu simplesmente me recuso a ficar em um lado ou em outro. Eu sou um anarquista até a ponta dos meus dedos. Sempre fui um e nunca vou ser outra coisa.
Todo mundo tende cuspir em mim, desde Izvestia até os nazistas oficiais, M. de Regnier, Comodia, Stavisky, o presidente Dullin, todos eles, quase nos mesmos termos exatos declararam-me inaceitável, inqualificável. Eu não provoquei isso com propósito, mas é um fato.
Estou bem com isso, porque é de meu direito. Todo sistema político é uma empresa do narcisismo hipócrita, que consiste em projetar a ignomínia pessoal de seus seguidores em um sistema ou sobre "outros".
 Eu admito que vivo muito bem: eu proclamo em voz alta, emocional e fortemente todas as repugnâncias do homem-comum nojento, à direita e à esquerda. Eu nunca vou ser perdoado por isso. Desde a morte dos sacerdotes o mundo nada mais é que a demagogia, a merda está constantemente sendo lisonjeada, e a responsabilidade é rejeitada através do artifício ideológico e verbal.

Não há mais arrependimento, não há nada além de gritos de revolta e esperança. Mas esperar o quê? Essa merda vai começar a cheirar bem?

Meu caro amigo, eu não traí ninguém e não peço nada de ninguém. Talvez serei executado.

Lenin e Napoleão falharam em seus propósitos. Eles usaram cetros aquecidos e gritaram que uma cura havia sido efetuada. Nonsense. Todo esse cinismo revolucionário (não o seu) não é nada além de vulgaridade, egoísmo eterno armado com novos subterfúgios.
 Se isto se definir como o comunismo, então você vai realmente ver alguma coisa. Algo mais sórdido do que as coisas anteriores. Conheço-os bem, os apóstolos e os heróis, à direita e à esquerda. Eu vivi com eles dia e noite, durante trinta anos. Revolução. Imediatamente. Mas antes, eles próprios. Não essas almas preguiçosas e espíritos, cocktail ou aperitivo de Picon. Por que escolher?

LFC

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Abril, 1934
Caro Amigo:

Eu sempre fui um anarquista: nunca votei e nunca vou votar em nada nem ninguém. Eu não acredito no homem. Por que você quer que eu comece de repente a usar o megaphone só porque doze dúzias de falhas gritam em torno de mim - sou eu que tocarei o piano de cauda tão bem? Por quê? 
Para que eu possa estar à altura destes covardes, constipados, invejosos, bastardos cheios de ódio? Isso é realmente uma piada. Eu não tenho nada em comum com esses castrados que gritam suas suposições desajeitadas e acabam por não entender nada. 
Você se vê pensando e trabalhando sob a autoridade do super-imbecil Aragon , por exemplo? Esse é o futuro? Todos querem que eu bajule Aragon? Ptooey! Se todos fossem menos preguiçosos, se fossem de tão boa vontade como eles próprios dizem que são -  fariam o que eu fiz ao invés de incomodar a todos com suas notas erradas. 
Eles estão empurrando a revolução ainda mais para o futuro, em vez de trazê-la à tona. Assemelham-se a esses homens que já não têm quaisquer instintos, que ferem as mulheres e nunca as atraem. Você não sente, meu amigo, a hipocrisia, a Tartufferie indizível de todos estes slogans de ventríloquo? 
O complexo de inferioridade de todos esses líderes é palpável. Seu ódio de tudo o que os supera, de tudo o que não entendem, pode ser visto claramente. Eles são tão ávidos para depreciar, para destruir, para sujar, para podar o próprio princípio da vida como o pior padre da Idade Média. Talvez um ou outro deles me executará. 
Os nazistas me odeiam tanto quanto os socialistas e os comunistas, para não mencionar Henri de Regnier e Comodia e Stavisky. Eles estão todos de acordo quando o caso é odiar-me. Tudo é permitido, exceto o homem que duvida. Então não é permitido se divertir. Eu sou a prova disso. Mas vou cagar em todos eles.

Carinhosamento, o seu:
L-F Céline.

(Nas margens: Não peço nada de ninguém. Os jovens são inconscientes e irão para onde o seu lirismo diz.


http://www.marxists.org/subject/anarchism/celine/1936-anarchist.htm

terça-feira, 8 de outubro de 2013

« Les Mémorables » (1989)

Este programa, transmitido pelo canal Arte em 15 de setembro de 1989, é composto por quatro partes: O "Retrato de L.-F. Celine ", dirigido por Yves Kovács para "Coleção Memorabílias", seguido de entrevistas filmadas com Peter Dumayet (1957) e Louis Pauwels (1961) e, finalmente," Passos no caminho de Celine" do programa "O Fundo e a forma" (1971) por Charles Chaboud onde Lucette Destouches retorna nos passos de Celine à Sigmaringen.

Louis-Ferdinand CÉLINE : « Les Mémorables » (1989) por alcyon12


Fonte: http://www.lepetitcelinien.com/

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Perdigotos

Em Céline, o seg­redo íntimo de cada ser está nessa humi­dade vis­cosa e ago­ni­ada, nessa baba intestina, nessa espuma avil­tante das tri­pas e mucosas — o nuclear é o excre­men­cial (…) O uni­verso de Céline é um inferno vis­ceral. — É aqui que eu entendo mel­hor a repugnân­cia lim­i­nar que me sus­cita uma escrita que é feita de ron­cos, perdig­o­tos e metá­foras vis­cosas.



"O judeu não explica tudo, mas ele catalisa toda nossa decadência, toda nossa servidão… Ele só se explica – seu poder fantástico, sua tirania assustadora, pelo seu ocultismo diabólico… O judeu não é tudo, mas ele é o Diabo e isto é o bastante – o Diabo não cria todos os vícios, mas ele é capaz de engendrar um mundo inteiramente, totalmente vicioso… Deus sabe como o branco está podre!… Mas o judeu soube ganhar esta podridão em seu favor, explorá-la, exaltá-la, catalisá-la, estandardizá-la como ninguém. Racismo! Racismo! Racismo! Todo o resto é imbecil – falo enquanto médico. Equidade? Justiça? Que casuísticas doentes e desastrosas – Elas contarão sempre contra nós! Esta é a regra do jogo. Desorganizados contra ferozmente organizados – Larvas contra formigas – Liberais contra racistas! Você não tem mais o instinto da perfeição física, do lirismo estético branco – Todo o “que” da coisa – Os livros o mataram – o sentido da vida branca – E, no entanto, você sabe como os judeus com o cinema apresentam esta terrível eliminação…"

Escolhi-a (Lucette Almanzor) para que recolhesse minha alma depois de minha morte


"É preciso recomeçar tudo da infância, pela infância, para todas as crianças… O desejo que toda a família seja bela, sã, vivaz, ariana, pura, redentora, resplandecente de beleza, de força, não somente sua pequena família, seus dois, três, quatro fedelhos, mas toda a família francesa, o judeu pelos ares, bem entendido, virado para suas Palestinas, ao Diabo, na lua."

“Fiquei surpreso e um pouco doído ao ver que nem Bagatelles nem L’École figuravam na livraria, enquanto se favorece a um enxame de peixes pequenos, abortos laçados à ultima hora, cabelos na sopa”

“Para recriar a França, seria preciso reconstruí-la inteiramente sobre bases racistas comunitárias. Nós nos afastamos todos os dias deste ideal, deste fantástico projeto (…). Os gauleses (…) estão amarrados ao cú dos judeus”

“Tenho constantemente a morte a meu lado”, e dizendo isso ele parece apontar o dedo para um cãozinho que estivesse deitado ao lado de sua poltrona.

“Se os bolcheviques estivessem em Paris eles fariam vocês verem como se lida com isso; eles mostrariam a vocês como se depura a população, quarteirão por quarteirão, casa por casa. Se eu carregasse a baioneta, eu saberia o que fazer.”

“O inimigo ocupa todos os postos, todas as trincheiras, todos os desfiles – todas as inteligências… Todos os bancos… Estamos a descoberto, sob suspeita, pouco numerosos, divididos, amanhã talvez desarmados…”

“Curioso ver como seres capazes de exigir de sangue frio a cabeça de milhões de homens se inquietam com sua vidinha suja”



“o artigo 75 no cú… Esse deus de pacotilha me gela o saco. Vacilo… Me acovardo… me confundo… não digo tudo… Ah! ah! Nem de longe”  

“Absolutamente nada, nada. Só tenho uma vontade, dormir e não ser chateado.”


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

semissanguessugas

Ao ler o Portrait d’un antisémite, de Jean-Paul Sartre, Céline viu-se tomado pela fúria e jurou “dar cabo desse aborto" do Sartre. Chamou o filósofo de “enfermidade epileptóide e porcaria”, que estaria “a precisar de um pontapé no rabo, de uma bordoada”. Gostaria de “partir-lhe o focinho, de o deixar sem ponta por onde se lhe pegasse”. Quis publicar sua resposta, A l’agité du bocal, que constitui, do começo ao fim, uma enfiada obscena de palavrões. Céline começa chamando o filósofo de Jean-Baptiste Sartre, tratando-o de parasita que se alojou em seu ânus (Céline parece fixado na fase sádico-anal) e abusando de metáforas escatológicas:
"Agarrados ao cú… cagarolas, semissanguessugas, semitênias… verme retal, embrião… o merdas… olho do cú infecto!… merdoso, empanturrado de merda, sais do rego do cú… Ânus de Caim, cestóides!… No meu cú, que é onde ele está… crosta de meu cú genial… escuridão do meu ânus… A merda seca do meu cú… olhos de feto… Tênia… Embrião… Tênia dos cagalhões, falso girino… Tênia trocista e filosófica… Monstro saído das merdas…"
Jean Paulhan recusou publicar esse panfleto estúpido, ordinário, que acabou saindo numa edição quase clandestina, numa tiragem de 200 exemplares, patrocinada pelos adoradores de Céline. Mais tarde, em D’un château à l’autre, Céline dedicou a Sartre mais algumas linhas de ódio: “Agente Tartre! Criptógrafo de merda! Especulador piolhento!”.

sábado, 7 de setembro de 2013

Quando o Mundo Transformar sua Alma eu Mudarei meu Estilo

Querido Mestre,

Os críticos de uma forma geral estão mostrando a prova de uma parcialidade nojenta em relação ao meu novo livro. Eles pretendem me fazer pagar caro pelo sucesso de Viagem (conseguido em grande parte graças a vocês). Eles tentarão de tudo para me fazer passar por conspirador, palhaço, excêntrico lunático e por ultimo, não menos importante, e muitos mais a sério, um tedioso!... Nada está faltando! Eles nem ao menos me leram. O ataque é completo! A intenção é deliberadamente me insultar, tanto quanto possível. Sem qualquer princípio moral ou integridade artística.

Claro que tudo isto é típico. Não importa qual arte, a taxa de formas fracassadas tem a proporção de 999 para 1000, os sucessos que permanecem provocam a revolução, um dilúvio de ódio. Muito bem. No entanto, me entristeceria enormemente se essa onda biliosa o impedisse de, ao menos, me ler. Eu sinceramente me dediquei a este trabalho, ardorosamente, uma grande oferta como a questão dos fatos.
Eu passei os últimos quatro anos nisto, dia e noite, além do meu miserável trabalho na clínica (1.500 francos por mês). Eu não sou rico, tenho uma filha e uma mãe para cuidar. Viagem me trouxe uma renda mensal de 1.200 francos por mês. Eu menciono essas somas porque elas explicam como as coisas estão no presente. Por Morte à Crédito eu literalmente trabalhei para a morte. Fiz meu melhor. Se aqueles que se permitem de uma forma tão covarde, com a impunidade de me envergonhar, possuíssem um décimo de minha integridade e aplicação, o mundo se tornaria um antro edênico e eu admito que minha literatura se mostraria injustificável. Este não é o caso. Há também o ressentimento, orgulhosamente sentido, acredito eu, contra minha quebra do estilo acadêmico sagrado tradicional. Eu escrevo uma espécie de fala, prosa transposta. Este estilo tem suas regras e leis, igualmente terríveis, como você bem sabe. Deixe que os outros tentem. Eles verão. Eu sucumbi o trabalho depois de mim, mas isso existe. Outra coisa, eu sou censurado por não ser Latino, clássico, meridional (características bem definidas... elegância, temperança... graça... etc.). Sou muito capaz de apreciar as diversas belezas de gênero, porém eu sou totalmente incapaz de me submeter a eles... Não sou Meridional. Sou parisiense, Bretão, e de ascendência flamenga. Escrevo como sinto. Sou censurado por ser sujo, por falar cruelmente. Se esse é o caso, então Rabelais, Villon, Brughel e tantos outros, deveriam ser acusados. Nem tudo vem da Renascença. Eu sou censurado por ser sistematicamente cruel. Somente quando o mundo mudar sua alma eu mudarei meu estilo. De onde é que subitamente esses puristas saem? Eu não os vejo protestar contra os filmes de gangsters! Contra a Detective Magazine! Contra tanta pornografia que é, em si, indesculpável. Esses puristas também são covardes! Eles não arriscam, especialmente permanecem anônimos, cuspem seu veneno em cima de um escritor solitário, arriscam muito mais contra os formidáveis interesses do Cinema ou de Hachette. Eles são os lambe-pé ou defensores ferozes da moral, dependendo do tamanho de sua tarefa.

Seguramente, eu nunca fui para a escola. Eu estudei para o meu bacharelado e meu diploma de médico enquanto trabalhava para ganhar a vida. Aprende-se muito desta forma. E parece que não vou ser facilmente perdoado por isso. Após tudo, eu sou um médico de periferia.
Médicos são desprezados, junto com sua experiência. Ao escrever esses tipos de livros, neste estilo que você conhece, eu corro o risco de ser descartado em qualquer lugar, e perder o trabalho. Eu não produzo literatura sedada. 

Finalmente, eu sou censurado por algo que chamam de confusão... Acho que é pouco provável o contrário. Eu escrevo na fórmula dos sonhos acordados... Ah! quão feliz você me faria se você reservasse um artigo para mim, mas não para me elogiar (este pedido não seria digno), mas para definir claramente, pois só você pode, o que não é e o que o é no meu livro.
      Eu estarei em dívida com você, meu querido amigo. 

 Sinceramente e amigavelmente o seu,




Louis Destouches
(L.-F. Céline)

(1933)

sábado, 24 de agosto de 2013

Excerto de "Progrès"

Provavelmente escrito em Maio de 1927, Progrès é a segunda (e última) peça de teatro escrita por Céline. A peça foi elaborada logo depois de sua outra peça, "L'Église". Céline enviou o manuscrito para a Gallimard, qual recusou, em outubro do mesmo ano.  As edições Mercure de France publicou a peça em 1978 e em seguida foi incluída no Cahier 8:  Progrès, suivi de Oeuvres pour la scène et l’écran (Ed. Gallimard, 1988). O primeiro nome da peça foi Périclès, subtitulado ""Farce en trois tableaux et petits divertissements". Esta peça apresenta evidentes imperfeições, mas possui o mérito de ter muitos pontos em comum com Morte à crédito.







                                                    Progrès

Personagens:

Marie: Ela não é bonita, é gentil, possui um ligeiro coxear, é bem humorada, ainda lúcida. Vinte e seis anos de idade.

Madame Punais:  Mãe de Marie, cinquenta anos de idade, sobriamente vestida, não triste, previamente uma retalhista de vestidos para senhoras, ela leva uma boa vida como comerciante de antiguidades.

Gaston: Trinta anos de idade, marido de Marie, irritável e inseguro, apaixonado e emocional, empregado em um escritório de seguros.

Mme. Doumergue: Muito, muito velha, ela dá aulas de piano, e é também manicure.

Criada: Uma típica empregada doméstica, parcialmente Breton.

Homem do Gás: Um típico trabalhador de empresas de gás. 

Ato Primeiro:

As personagens estão vestidas de um modo um tanto fantástico, embora não excessivamente, d'uma forma colorida, divertida, de um jeito simbólico parecido a um sonho, embora também não tão excessivamente-iluminado como num sonho, exceto em certos momentos específicos.
Primeira cena - Marie está num lounge, muito luxuoso. No palco: Marie e Madame Punais. Marie está tocando o piano com dificuldade, um fox-trot que ela tenta tornar efervescente e cínico. Ela está achando difícil, muito difícil. Sua mãe assiste e ouve. Mas Marie fica um pouco iritada e se levanta para fechar a janela. No momento em que vai fechar a janela nós percebemos que ela tem um coxo. Enquanto Madame Punais vê o andar molenga de sua filha, observa Marie ainda mais de perto, mas não diz nada. Marie volta ao piano e toca,  sua mãe sai de cena por um momento então volta e remoceça a ler o jornal. 

Mme. PUNAIS: Honestamente, Marie!...  apenas ouça isto!... (Marie continua tocando o piano) Marie! Eu digo!... você acreditaria?

MARIE: (um pouco impaciente) Mãe!...

Mme. PUNAIS: Você acredita nisto? Escute!...

Marie: (ainda tocando) O que?

Mme. PUNAIS:  Honestamente, o Bois de Boulogne!...

Marie: O que é isso de Bois de Boulogne?

Mme. PUNAIS:  Bem, maníacos sexuais...

Marie (não impressionada): Aah!... 

Mme. PUNAIS: Bem, abençoe-me, você ainda acha que não há nada de errado com isso! Está acontecendo há 4 anos... eles dizem que vão pra lá em grupo, e de carro.

Marie: Oh Mãe!

Mme. PUNAIS: Oh! Jovem moça!

Marie: Que?

Mme. PUNAIS: Vá é tocar piano, já... eu sou a única que lhe deu isto.

Marie: Eu já lhe agradeci por isso. 

Mme. PUNAIS: Oh, não direi que paguei muito por ele, você sabe melhor que eu... Nos últimos 15 anos esteve na loja... é a única coisa que não foi vendida em 15 anos.

Marie: Ah, ele esteve no lugar errado, cercado por bugigangas - se você o tivesse colocado perto da janela, como eu costumava dizer-lhe, teria sido levado embora, mas foi escondido por toda essa tralha invendável, você não poderia vê-lo lá de fora, também.

Mme. PUNAIS: Enfim, você herdou, não se queixe... você quer ter aulas novamentes, eu fico feliz em pagar por elas... pelo piano... agora deixa isso pra lá e dê as cartas.

Marie (passando-as): Você lerá as suas?

Mme. PUNAIS (dividindo-as): Não! Eu vou ler as suas, você parece ansiosa.

Marie (sem prestar muita atenção nas cartas): Quem te deu a ideia de me dar aulas?

Mme. PUNAIS: Madame Doumergue...

Marie: Velha Mãe Doumergue?

Mme. PUNAIS: Sim!... Vamos, você certamente se lembra dela.

Marie: Claro, mas pensei que ela estava morta - você lembra, ela subia as escadas assim... Ah!... Ah!... (ela fica ofegante)

Mme. PUNAIS: Ela ainda sobe assim! ah! ah!

Marie: Você tem certeza que é ela?

Mme. PUNAIS: Claro que tenho, ela ainda dá as mesmas aulas.

Marie: Ela deve ser centenária, então!

Mme. PUNAIS: Eu vou perguntar a ela.

Marie: Você foi onde ela mora?

Mme. PUNAIS: Sim, em Asniéres, ela ainda tem sua casinha com treliças trabalhadas no primeiro andar e um jardim com pequenas bolas suspendidas, que ainda são ligeiramente brilhantes. Ver isso não me faz sentir mais jovem, posso lhe dizer, especialmente as bolinhas! Isso me faz lembrar que seu pai costumava circular com uma lambreta ao longo do aterro de Asniéres, com uma camisa solta e uma gravata fina com bolotas fantásticas desenhadas na parte que cobre o umbigo. Suas panturrilhas eram soberbas. Essa moda ainda voltará, você verá homens com gravatas finas, mas não da forma fantasiosa, não se verá homens jovens em forma fantasiosa, a moda nunca mais será fantasiosa, eu acho porque nos vendemos muito aos créditos, e é isso que faz as pessoas ficarem tristes, elas todas têm dívidas.  No meu tempo só artistas tinham dívidas, mas por eles se recusarem a pagar essas dívidas, nunca ficaram tristes.

Marie: Então o que Madame Doumergue lhe disse?

Mme. PUNAIS: Que estava muito feliz em ver-me, mas, como cheira sua casa! Você não acreditaria! Eu não estou interessada no passado quando ele fede tanto quanto isso! De qualquer forma, você não irá lá, ela virá aqui.

Marie: Mas mãe, você matará ela, fazendo-a viajar naquela idade! 

Mme. PUNAIS: Não, ela me disse que prefere vir aqui, no verão, ela pegaria o barco desde Saint-Cloud e voltaria de bonde elétrico.

Marie: De barco ela estaria bem - mas na sua idade, de bonde?... Você tem certeza que estamos falando da mesma pessoa?

Mme. PUNAIS: De fato estamos! Além de tudo, nós não mudamos nada!...

Marie: O que fez você pensar em entrar em contato com ela, em particular?

Mme. PUNAIS: Ela me deve dinheiro, o mesmo que ela me deve de 20 anos atrás. Ela está na categoria dos artistas. Quando se trata de dívidas ela não paga e isso não a desconforta. 

Marie: Quanto ela te deve?

Mme. PUNAIS: É segredo.

Marie: OH!

Mme. PUNAIS: Sim.

Marie: OH!

Mme. PUNAIS: Isso foi após nossa formatura, você acabava de se tornar noiva de Gaston La Garenne, seu marido (silêncio)... evitando assim o casamento com Jean Bart, que era perfeito. 

Marie: Sim, mamãe.

Mme. PUNAIS (resignada): Não vamos voltar a isso agora... Eu realmente gosto de Gaston, também.

Marie: Ainda melhor.

Mme. PUNAIS: Foi nesse momento que você parou com o piano, a fim de ficar noiva de Gaston, e não se casar com Jean Bart, 13 anos atrás. 

Marie: TREZE ANOS ATRÁS!

Mme. PUNAIS: Treze.

Marie: E então...?

E. Doméstica: Sou eu de novo!

Mme. PUNAIS: Venha!

Marie: Vá embora!


Mme. PUNAIS: Nãe se mova, posso dizer que você tem algo a contar.

Doméstica: É a cera-polaca!

Marie: Muito bem, então!

Mme. PUNAIS: Vá-te!

Doméstica (enquanto sai): Que seja!

Mme. PUNAIS: Aqui. (lendo as cartas) oh!... Marie!... um pequeno problema...  outra vez... eu vejo... pequenos problemas... muitos deles...

Marie: Isso soa como se tivesse algumas novidades para mim!

Mme. PUNAIS: Ah! Problemas de saúde!... mas nada para se preocupar, são constipações...

Marie: Quanto ela irá te cobrar pelas aulas de piano?

Mme. PUNAIS (lendo as cartas): Eu sempre posso ver a Saúde, você sabe.... É Saúde.

Marie: Oh! Eu não sei nada sobre isso! Diga-me então se ela ainda toca piano com sua idade, você escutou ela tocar?

Mme. PUNAIS: Mas ela sempre foi uma artista, essa mulher, ela tocava e cantava singularmente, há trinta e cinco anos atrás ela ainda tinha bons ombros, seu pai falava dela muitas vezes para não acabar dormindo com ela.

Marie: Oh! Mãe!

Mme. PUNAIS: Sua mãe sabe que foi traída, isso me deixava triste à toda hora, ainda mais triste é ser viúva.

Marie: Então, mãe, você conhece M. Doumergue há muito tempo?

Mme. PUNAIS: Eu a conheço de dentro para fora. Não apenas por ela ter sido amante de seu pai, mas também nunca pagou pela pequena penteadeira Luís XV, uma pequena joia, que comprou de mim. Eu nunca vou esquecer aquele dia antes do Dia de Todos os Santos, no ano de 1900. Ela comprou, 120 francos. Oh! Pode-se dizer com segurança que ela não está preocupada com a dívida, de vez em quando eu voulembrá-la, e ela diz: "Oh! Madame Punais, nós nos conhecemos há muito tempo, agora, venha agora! Não falaremos disso outra vez!" Eu não consigo nada mais com ela. É verdade, nos conhecemos há muito tempo! De qualquer maneira, ela ainda tem, aquela minha penteadeira, a original. Eu vendo cópias dela, desde então. A preços altíssimos! Mas ela tem a original, e nunca pagou por ela. (lê as cartas) Veja: Problemas. (Nós ouvimos alguém tocando piano no apartamento vizinho).

Marie: Você pode ouvir mesmo através do concreto armado, nós podemos ouvir tudo... Não sinto mais a casa. E é o mesmo com todas as novas-casas.

Mme. PUNAIS: Ele toca bem, não é? Ele coloca coração nisso... talvez esteja tocando para você...

Marie: Para mim?

Mme. PUNAIS: Você não acha?

 Marie: Eu não sei mãe, porque ele tocaria para mim? É nosso vizinho!

Mme. PUNAIS: Oh... afinal toca bem, ele não é professor?

Marie: Não, é funcionário público.

Mme. PUNAIS: Ah! Ah! Bem, vocês poderiam, talvez, tocar à quatro mãos, vocês dois. 

Marie: Quatro mãos? Mas pela Graça de Deus, Mãe, um homem já me basta. O que você espera?

Mme. PUNAIS: Oh, eu, você sabe! Enfim, você quer agradá-lo ao mesmo tempo que não quer que ele seja ciumento. É difícil agradar um homem que já não é ciumento. - agora, você vê nas cartas.. um pequeno problema... Ah!, Sim... certamente há!

Marie: Você está obcecada com isso! (A doméstica entra na sala).

Mme.  PUNAIS (para a doméstica) : É uma senhora? (a doméstica balança a cabeça) Então vá se arrumar minha garota, é um cavalheiro.

Marie: Mas porque mãe?

Mme. PUNAIS: Oh, vá se ajeitar minha filha. Como você é irritante!

Marie: Mas porque?

Mme. PUNAIS: Oh! Vá! (Entra Monsieur Berlureau, muito reservado e pouco à vontade)

M. Berlureau: Madame... Tomei a liberdade de visitar-lhe... uma pequena visita, sou Berlureau.

Mme. PUNAIS: Muito prazer em recebê-lo, senhor.

M. Berlureau: Sou seu vizinho.

Mme. PUNAIS: Oh! Você toca tão bem! Você veio pela minha filha. Você a conhece?

M. Berlureau: Eu não a conheço, Madame, mas me desculpo por tocar, talvez já um pouco tarde da noite... nossas paredes são tão finas que talvez pode-se perturbar alguém sem estar ciente disso, então tomei a liberdade de perguntar, sou Berlureau.

Mme. PUNAIS: Mas como você toca bem o piano!

M. Berlureau: Oh, Madame, eu só me aventuro.

Mme. PUNAIS: Você não conhece ela. Ela ficará feliz. Ela sempre me diz: "Quão bem toca piano nosso vizinho!"

M. Berlureau: Oh, Madame, estou envergonhado, vou-me embora!

Mme. PUNAIS: Definitivamente não, senhor, é fato! Sua execução nos leva a um sonho.  

M. Berlureau: É uma correspondência espiritual.

Mme. PUNAIS: É isso! Você conhece meu genro, também? 

M. Berlureau: Não, Madame, eu não tive o prazer ainda, mas você sabe, eu vim pedir desculpas por tocar tão tarde, às vezes.

Mme. PUNAIS: Oh! É estranho. Eu sempre tenho a impressão de que todo mundo conhece ele ... minha filha quer agradá-lo, ela tenta iluminar o quarto com o piano ... isso é uma idéia ...

M. BERLUREAU: Sim, isso é uma idéia ... (Gaston entra).

GASTON: Olá, Madame.

Mme. PUNAIS: Olá, Gaston. (Berlureau está envergonhado).

Mme. PUNAIS: Ele é o nosso vizinho, ele veio para nos dar uma breve visita e eu tive o prazer de me familiarizar com ele, ele é o pianista que ouvimos, você sabe.

GASTON: Que ouvimos com muito prazer.


Mme. PUNAIS: Bem! Ele veio para se certificar de que não nos perturba quando ele ocasionalmente toca à noite.

GASTON: Oh! Certamente que não, a sério, senhor, pelo contrário, é um verdadeiro prazer.

Mme. PUNAIS: Por que teríamos que pagar um tanto em outro lugar, mas eu vou pedir-lhe para vir e nos ver mais vezes Monsieur - você estaria disposto a tocar música com a minha filha?

GASTON: Oh! Madame! Isso é pedir muito, Marie está aprendendo.

Mme. PUNAIS: Não, eu acho que seria adorável.


                                                             [e, desgraçadamente, o piano continua ...]
 



















 







domingo, 14 de julho de 2013

Ah, Céline, só mesmo o Homem para se divertir com a própria morte enquanto caminha para ela...

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Abujamra - O Grande Absurdo

Abujamra recita Céline: "O grande cansaço da existência talvez seja apenas o mal que causamos a nós mesmos para nos mantermos razoáveis por vinte anos, quarenta anos ou mais, ao invés de sermos simplesmente nós mesmos, isto é: atrozes e absurdos."

A Lenda do Rei Krogold (excerto de Morte à Crédito) [1/2]

Minha história não tinha ganho nada com o tempo. Depois de anos de esquecimento, uma obra de imaginação não passa de uma festa antiquada... Afinal, Gustin ia me dar sua opinião sincera e imparcial. Fui logo fazendo com que ele entrasse na atmosfera da lenda.

- Gustin, você nem sempre foi o boçal que é hoje, endurecido pelas circunstâncias, pela profissão, pela bebida e pela necessidade de aceitar tanta coisa ruim... deixar o coração e o pau pulsarem com mais força, ouvindo uma epopéia, trágica, naturalmente, mas nobre... brilhante!... Você ainda é capaz disso?...

Gustin deixou-se ficar, no banquinho, sonolento, diante das amostras e do armário escancarado... Sem dar um pio... não queria me interromper...
- Eu tinha avisado que se tratava de Givendor o Magnífico, Príncipe da Critiânia... Chegamos... Agora mesmo, enquanto eu falo com você, ele está agonizando... O sangue escorre de vinte feridas...

O exército de Givendor acaba de sofrer uma derrota tremenda... O próprio rei Krogold, durante a luta, encontrou Givendor... Golpeou-o de alto a baixo... Krogold não perdoa... Faz justiça por suas próprias mãos... Givendor traiu... A morte se abate sobre Givendor e vai terminar sua tarefa...
"O tumulto do combate esmorece com os derradeiros clarões do dia... Desaparecem ao longe os últimos guardas do Rei Krogold. Na sombra levantam-se os estertores da imensa agonia de todo um exército... Vitoriosos e vencidos entregam a alma como podem... O silêncio abafa pouco a pouco os gritos e gemidos, cada vez mais fracos, cada vez mais raros... Esmagado sob um monte de correligionários, Givendor o Magnífico esvai-se em sangue... De madrugada a morte chega perto dele.
- Compreendeste Givendor?
- Compreendi, oh Morte! Compreendi desde o começo deste dia... Senti no coração, no meu braço, nos olhos de meus amigos, até no passo de meu cavalo, uma espécie de sortilégio triste e lento que se assemelhava ao sono... Minha estrela se apagava entre tuas mãos geladas! Tudo começou a fugir! Oh Morte! Que remorsos! Sinto uma vergonha imensa!... Olha esses pobres corpos!... nem uma eternidade de silêncio pode acalmá-la!...
- Não há paz neste mundo, Givendor! Só lendas! Todos os reinos acabam num sonho!...
- Oh Morte! Deixa-me viver um pouco mais... um dia ou dois! Quero saber quem me traiu...
- Tudo é traição, Givendor... As paixões não são de ninguém, o amor, principalmente, é só uma flor de vida no jardim da juventude.

E a morte, devagarinho, segura o príncipe... Ele não se defende mais... Ficou leve, sem peso... E depois um lindo sonho se apodera de sua alma... O sonho que sempre, quando era pequeno, no seu berço de peles, no quarto dos Herdeiros, perto de sua ama morávia, no Castelo do Rei René..."
Gustin tinha deixado as mãos caírem entre os joelhos...

Estava desconfiado. Não queria voltar à juventude. Defendia-se. Quis que eu explicasse tudo... por quê?... como?... Não é fácil... É frágil como uma borboleta. Por qualquer coisa se desmancha, suja as mãos. O que é que se ganha com isso? Não insisti.

Para organizar bem a trama da minha Lenda eu poderia documentar-me com pessoas finas,,, acostumadas aos sentimentos... às mil variantes das tonalidades do amor...
Mas prefiro resolver tudo sozinho. O meu problema é o sono. Se eu conseguisse sempre dormir bem, nunca teria escrito uma linha.
Muitas vezes as pessoas refinadas nada mais são do que gente que não pode gozar. É uma simples questão de disciplina. Essas coisas não se perdoam. Mesmo assim, vou descrever o castelo do Rei Krogold:

"... Um monstro tremendo no âmago da floresta , uma massa, acachapada, esmagadora, cortada no rochedo... formada de cloacas, cornijas carregadas de frisos e saliências... de outras torres... De longe, lá do lado do mar... as copas da floresta ondulam e vêm bater no sopé das primeiras muralhas...
A sentinela que arregala os olhos com medo da forca... Mais alto... Bem no alto... No topo de Morehande, a Torre do Tesouro, o Estandarte tatala na tormenta... Leva as armas reais. Uma serpente com a cabeça cortada e o pescoço escorrendo sangue! Malditos os traidores! Givendor está expiando seu crime!..."

Gustin não aguentava mais. Estava cochilando... chegava a roncar. Virei-me para fechar o armário de remédios e lhe disse: "Vamos embora! Vamos dar um passeio pelo Sena!... Vai-te fazer bem..." Ele preferia não ter que se mexer... Afinal, como eu insisto, ele resolve. Proponho um cafezinho do outro lado da "Île aux Chiens"... Lá, apesar do café, ele torna a adormecer. Já devem ser quatro horas, é o momento em que sonham os botequins... Há três flores artificiais no vaso de lata. Tudo fica esquecido no cais. Até o velho bêbedo debruçado no balcão se convence de que a dona não vai mais escutar suas histórias. Eu deixo Gustin em paz. O próximo rebocador que passar vai acordá-lo, com certeza. O gato largou a velhota para vir lamber as patas.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Carta d'África

Minha querida Simone,                       [29 de Outubro, 1916]

Já se passaram exatos dois anos desde o dia em que fui ferido. Lembro-me que, naquela época, não havia trincheira de comunicação entre a primeira linha de trincheiras e o posto de comando. Após o anoitecer você poderia ficar horas tateando até encontrar o posto de comando, já que naturalmente não havia iluminação para mostrar-lhe onde estava. 
Nós costumávamos chamar isso de "protegendo as vacas".
Eu estava "protegendo as vacas" quando o meu número foi chamado.
Hoje é domingo, e vou aproveitar para anunciar que detesto qualquer tipo de trabalho.
Nasci ocioso e adoro preguiça.
Eles alegam que o trabalho enobrece o homem, mas eu digo que o torna vil.
Correndo o risco de errar fora da amoralidade, eu proclamo que não sou obrigado a ganhar minha vida, eu gostaria de não fazer nenhuma maldita coisa, nada e nada.
Como é domingo, vou te recontar um pequeno conto que talvez você já conheça-
Um dia o Bom Deus estava andando pelos Bálcãs- Ele encontra um nativo que parecia um tanto ofendido- e pergunta "o que acontece, amigo?" -Silêncio-"Bem, eu lha darei o que você quiser e para provar que sou bom à todos, seus vizinhos receberão o dobro do que você pedir" - "Neste caso," disse o Bálcã, "me deixe cego de um olho".
Aí está você -E ainda, porque é domingo, vou lhe dar um pequeno problema para resolver. Você já deve ter sido convidada a resolvê-lo antes. Duas vacas num prado verde - uma delas é branca, magra, só pele e osso - A outra é negra, couro brilhante - gorda e radiante de saúde. De repente,a enraivecida e furiosa vaca branca pula na pobre, plácida vaca negra, e espeta com o chifre sua bunda. E agora, qual das vacas poderá dizer "eu tenho chifres na bunda"?

Destouches.