sábado, 14 de maio de 2011

Entrevista de Louis Ferdinand Céline - 1° de Junho de 1960






Entrevista conduzida por J. Darribehaude, J. Quenot, André Parinaud e Claude Sarraute, publicada na Paris Review, inverno-verão de 1964 e republicada no livro; Os escritores: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Cia. das Letras, 1988, de onde foi extraída.


Apresentação: 


Louis-Ferdinand Destouches (Céline é um pseudônimo) nasceu a 27 de maio de 1894, em Paris, filho de um funcionário pobre e uma rendeira. Depois de receber uma educação primária, Destouches trabalhou em várias ocupações até 1912, quando ingressou na cavalaria. Logo no início da Primeira Guerra Mundial, foi ferido na cabeça e adquiriu neurose de guerra numa ação pela qual foi condecorado por bravura. O sofrimento, físico e mental, provocado por esses ferimentos perseguiu-o até o fim de sua vida.
Após ser dispensado por invalidez, obteve um diploma médico; tornou-se então cirurgião assistente na fábrica Ford em Detroit. A seguir foi para a África, e aí, após um período na Liga das Nações, decidiu-se pelo trabalho médico extremamente mal remunerado entre os pobres de Paris.
O primeiro romance de Céline foi Voyage au bout de la nuit (1932), que logo se tornou um sucesso internacional. Seu segundo romance, Mort à crédit (1936), consolidou sua reputação. Seu uso da linguagem coloquial, suas visões da vida nos estratos mais baixos da sociedade, seu sarcasmo - aliados à compaixão - influenciaram Sartre, Queneau e Bernanos e, entre os norte-americanos, Henry Miller, Burroughs, Ginsberg e Kerouac.
No fim dos anos 30, Céline começou a tender politicamente para o fascismo e proclamou seu anti-semitismo. Durante a ocupação alemã, seu comportamento foi ambíguo. Depois da libertação, teve que fugir para a Dinamarca, com a identidade disfarçada sob seu verdadeiro nome. Foi julgado in absentia, mas o veredicto foi posteriormente anulado e lhe permitiram retomar à França, onde passou seus últimos anos - parcialmente paralisado e à beira da loucura. Céline, entretanto, continuou a escrever, produzindo dois romances - D'un château à l'autre (1957) e Nord (1960) - considerados por alguns críticos como equivalentes aos seus dois grandes livros dos anos 30. Morreu em Paris, a 1.° de julho de 1961.

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                             (Entrevista, 1º de junho de 1960)


L.F. Céline: O que posso lhe dizer? Não sei como agradar aos seus leitores. Essa gente com quem você tem que ser gentil... Não pode massacrá-los. Eles gostam de ser entretidos sem ser maltratados. Bem... Vamos conversar. Um autor não tem tantos livros dentro de si. Voyage au bout de ia nuit... já deveria ter sido o suficiente ... Entrei nisso por curiosidade. Curiosidade, isso custa. Tornei-me um cronista trágico. A maioria dos escritores está procurando a tragédia sem encontrá-la. Relembram pequenas histórias pessoais que não são tragédia. Você dirá: os gregos. Os trágicos gregos tinham a impressão de falar com os deuses ... Bem, é claro ... Cristo, não é todo dia que se tem a chance de telefonar para os deuses.


- E o trágico nos nossos tempos, para você?


L.F. Céline: É Stalingrado. Que tal isso para a catarse! A queda de Stalingrado é o fim da Europa. Lá houve uma catástrofe. O centro disso tudo era Stalingrado. Lá você pode dizer que acabou, e bem acabada, a civilização branca. Então aquilo tudo, aquilo fez algum barulho, alguma ebulição, as armas, as cataratas. Eu estive ali... Aproveitei isso. Usei esse material. Vendi-o. Evidentemente, meti-me em questões - a questão judaica - que não eram da minha conta, não era da minha conta estar ali. Mesmo assim eu as descrevi ... do meu jeito.


- Um jeito que provocou um escândalo com a publicação de Voyage. O seu estilo sacudiu um bocado de hábitos.


L.F. Céline: Eles chamam isso de invenção. Olhe os impressionistas. Um belo dia pegaram seus quadros e foram pintar do lado de fora. Viram como é que realmente se almoça na grama. Os músicos também trabalharam nisso. De Bach a Debussy há uma grande diferença. Provocaram algumas revoluções. Despertaram as cores, os sons. Para mim são as palavras, as posições das palavras. No que concerne à literatura francesa, aí eu serei o sabichão, não se engane. Somos pupilos das religiões - católica, protestante, judaica ... Bem, das religiões cristãs. Aqueles que dirigiram a educação francesa por séculos foram os jesuítas. Eles nos ensinaram a compor sentenças traduzidas do latim, bem balanceadas, com um verbo, um sujeito, um complemento, um ritmo. Em suma: aqui uma frase, ali uma oração, em todo lugar um sermão! Dizem de um escritor: "Ele tece frases tão belas!". E eu digo: "É ilegível". Dizem: "Que estupenda linguagem teatral!". Eu olho, eu ouço. É rasa, é nula, é nada. Eu enfiei a palavra falada na escrita. De uma só vez.


- É isso o que você chama de sua "pequena música", não?


L.F. Céline: Chamo de "pequena música" porque sou modesto, mas é uma transformação muito difícil de realizar. É trabalho. Do jeito que é não parece ser nada, mas tem qualidade. Para fazer um romance como um dos meus você tem que escrever oitenta mil páginas para conseguir oitocentas. Algumas pessoas dizem, quando falam de mim: "Há eloqüência natural... Ele escreve como fala... Aquelas são palavras do dia-a-dia... São praticamente idênticas... Pode-se reconhecê-las". Bem, aí, isso é "transformação". Simplesmente não é a palavra que você está esperando nem a situação que você está esperando. Uma palavra utilizada desse jeito se torna ao mesmo tempo mais íntima e mais exata do que o que você normalmente encontra nesse lugar. Você inventa o seu estilo. Ajuda a pôr para fora o que está querendo mostrar de você mesmo.


- O que você está querendo mostrar?

L.F. Céline: Emoção. Savy, o biólogo, disse algo apropriado: No princípio havia emoção, e o verbo não estava lá de jeito algum. Quando você cutuca uma ameba, ela se retrai, tem emoção, não fala mas tem emoção. Um bebê chora, um cavalo galopa. Só que, a nós, deram-nos o verbo. E isso lhe dá o político, o escritor, o profeta. O verbo é horrível. Não se pode cheirá-lo. Mas chegar ao ponto em que se pode traduzir essa emoção, essa é uma dificuldade que ninguém imagina... É feio... É sobre-humano... É um truque que pode matar um cara.


- No entanto, você sempre aprovou a necessidade de escrever.


L.F. Céline: Não se faz nada de graça. Você tem que pagar. Uma história que você inventa, isso não vale nada. A única história que conta é aquela pela qual você paga. Depois de pagá-la, tem o direito de transformá-la. De outro modo não presta. Eu trabalho... Tenho um contrato, ele tem que ser cumprido. Só que hoje tenho sessenta e cinco anos, estou setenta e cinco por cento mutilado... Na minha idade a maioria dos homens já se aposentou. Devo seis milhões a Gallimard... por isso sou obrigado a continuar... Já tenho outro romance em curso: sempre o mesmo negócio... Uma ninharia. Conheço uns poucos romances. Mas os romances são um pouco como renda... uma arte que desapareceu com os conventos. Os romances não podem competir com os carros, o cinema, a televisão, a bebida, Um cara que está bem alimentado, que escapou da grande guerra, de noite dá um picote na velha e o seu dia acabou. Findo.


                           (Entrevista, mais tarde em 1960)


- Você se lembra de ter tido um choque, uma explosão literária que o tivesse marcado?

L.F. Céline: Ah, não, nunca! Comecei na medicina e queria medicina, certamente; não literatura. Cristo, não! Se há algumas pessoas que me parecem dotadas, são - sempre os mesmos - Paul Morand, Ramuz, Barbuse, os caras foram feitos para isso.

- Na sua infância nunca pensou que chegaria a ser escritor?


L.F. Céline: Ah, não, de jeito nenhum, não, não, não. Eu tinha uma imensa admiração pelos médicos. Ah, isso parecia extraordinário, isso sim. A medicina era a minha paixão.


- Na sua infância, o que um médico representava?


L.F. Céline: Apenas um camarada que vinha à passage Choiseul para ver minha mãe doente, meu pai. Vi um cara milagroso, vi sim, que curava, que fazia coisas surpreendentes para um corpo que não estava funcionando bem. Achei isso tremendo. Ele parecia muito sábio. Achei absolutamente mágico.


- E, hoje em dia, o que um médico representa para você?


L.F. Céline: Bah! Agora ele é tão maltratado pela sociedade que sofre competição de todo mundo, não tem mais prestígio, mais nenhum prestígio. Já que anda vestido como um empregado de posto de gasolina, bem, pouco a pouco, vai se tornando um empregado de posto de gasolina. Não é? Já não tem muito a dizer, a dona-de-casa tem a Enciclopédia médica Larousse, e mesmo as doenças perderam o seu prestígio, há menos delas; então veja o que aconteceu: nem sífilis, nem gonorréia, nem tifo. Os antibióticos tiraram muito da tragédia da medicina. Então não há mais peste, não há mais cólera.


- E as doenças nervosas e mentais, o número delas não aumentou, por sua vez?


L.F. Céline: Bem, aí não podemos fazer nada. Algumas loucuras matam, mas não muitas. Quanto aos meio loucos, Paris está cheia deles. Há uma necessidade natural de se procurar excitamento, mas sem dúvida todas as bundas que se vêem pela cidade inflamam o desejo sexual até um grau... deixam os adolescentes malucos, não é?


- Quando estava trabalhando na Ford, teve a impressão de que o modo de vida imposto às pessoas que lá trabalhavam corria o risco de agravar distúrbios mentais?


L.F. Céline: Ah, de jeito nenhum. Não. Eu tinha um médico chefe na Ford que costumava dizer: "Dizem que até chimpanzés colhem algodão. Digo que seria melhor ver alguns deles trabalhando nas máquinas". Os doentes são preferíveis, são muito mais apegados à fábrica do que os saudáveis; os saudáveis estão sempre caindo fora, enquanto os doentes permanecem no emprego muito bem. Mas o problema humano, agora, não é a medicina. São quase só as mulheres que consultam os médicos. A mulher é cheia de problemas, pois tem nitidamente toda espécie de fraqueza que se conhece. Ela precisa... ela quer permanecer jovem. Tem a sua menopausa, as suas regras, toda a questão genital, que é muito delicada, faz dela um mártir, não, daí esse mártir vive de qualquer modo, sangra, não sangra, vai e vê o médico, faz operações, não faz operações, é re-operada; aí, no meio disso, ela dá à luz, perde a sua forma, tudo isso conta. Quer permanecer jovem, manter a linha, bem. Não quer fazer nada e não pode fazer nada. Não tem nenhum músculo. É um problema imenso... dificilmente reconhecido. E sustenta os salões de beleza, os charlatões e os farmacêuticos. Mas não representa uma situação médica interessante, o declínio da mulher. É sem dúvida uma rosa murchando, não se pode dizer que seja um problema médico ou um problema agrícola. Num jardim, quando você vê uma rosa murchar, aceita. Outra vai florescer. Ao passo que a mulher, não; ela não quer morrer. Essa é a parte difícil.


- A sua profissão de médico trouxe-lhe um certo número de experiências e revelações que você transmitiu nos seus livros.


L.F. Céline: Ah, sim, sim, passei trinta e cinco anos clinicando, então isso conta um pouco. Andei um bocado na minha juventude. Subimos um bocado de escadas, vimos um bocado de pessoas. Ajudou-me um bocado de todas as maneiras, devo dizer. Sim, imensamente. Mas não escrevi nenhum romance médico, essa chateação abominável... come Soubiran.


- A sua vocação médica manifestou-se bem cedo em sua vida e, no entanto, você começou de modo inteiramente diferente.


L.F. Céline: Ah, sim. E como! Queriam fazer de mim um agente de compras. Um vendedor de grande magazine! Nós não tínhamos nada, meus pais não tinham meios, entende? Comecei na pobreza e é assim que estou terminando.

- Como era a vida para o pequeno comércio em 1900?

Terrível, terrível. No sentido de que mal tínhamos o suficiente para comer e tínhamos que manter as aparências. Por exemplo, tínhamos duas frentes de loja na passage Choiseul, mas apenas uma ficava sempre acesa, pois a outra estava vazia. E tínhamos que lavar a calçada antes de ir trabalhar. Meu pai não era brincadeira. Bem, minha mãe tinha um par de brincos. Nós sempre o levávamos à loja de penhores no fim do mês para pagar a conta de gás. Ah, não, era horrível.


- O senhor viveu bastante tempo na passage Choiseul?


L.F. Céline: Bem, dezoito anos. Até que me alistei. Era pobreza extrema. Pior de que pobreza, porque na pobreza você pode se abandonar, se arruinar. se embriagar, mas essa era uma pobreza que mantém as aparências, pobreza digna. Era terrível. Toda a minha vida comi macarrão. Porque minha mãe costumava consertar renda antiga. E o que acontece com essa renda é que os cheiros grudam nela para sempre. E você não pode entregar renda que fede! Então o que é que não fedia? Macarrão. Comi bacias de macarrão. Minha mãe fazia macarrão em bacias. Macarrão cozido, ah, sim, sim. toda a minha juventude, macarrão e mingau. Coisas que não fediam. A cozinha na passage Choiseul era no segundo andar, do tamanho de um armário, você chegava ao segundo andar por uma escada em caracol, assim, e tinha que subir e descer infinitamente para ver se estava cozinhando, se estava fervendo, se não estatava fervendo, insuportável. Minha mãe era aleijada, uma das suas pernas não funcionava, e ela tinha que subir aquela escada. Costumávamos subi-la umas vinte e cinco vezes por dia. Que vida! Uma vida insuportável! E meu pai era um funcionário. Ele voltava para casa às cinco. Tinha que fazer as entregas para ela. Ah, não, aquilo era pobreza, pobreza digna.


- O senhor também sentiu a agrura de ser pobre quando entrou para a escola?
 

L.F. Céline: Não éramos ricos, na escola. Era uma escola do Estado, você sabe, então não havia nenhum complexo. Nem muitos complexos de inferioridade, também. Eram todos como eu, garotinhos cheios de pulgas. Não, não havia gente rica naquele lugar. Nós conhecíamos os ricos. Eram dois ou três. Nós os venerávamos! Meus pais costumavam me dizer: aquelas pessoas são ricas, o comerciante de linho local. Pru'homme. Tinham caído lá por engano, mas nós os reconhecíamos, com horror. Naqueles dias nós venerávamos o homem rico! Pela sua riqueza! E ao mesmo tempo pensávamos que era inteligente.


- Quando e como o senhor se deu conta da injustiça que isso representava?


L.F. Céline: Bem tarde, devo admitir. Depois da guerra. Aconteceu, percebe´, quando vi gente ganhando dinheiro enquanto os outros estavam morrendo nas trincheiras. Você via isso e não podia fazer nada. Aí, mais tarde, eu estava na Liga das Nações, e lá vi a luz. Vi realmente que o mundo era governado pelo Bezerro, pelo Dinheiro! Ah, sem brincadeira! Implacavelmente. A consciência social certamente veio tarde para mim. Eu não a possuía, eu era resignado.


- A atitude de seus pais era de aceitação?


L.F. Céline: Era de frenética aceitação! Minha mãe sempre costumava me dizer; "Pobre menino, se não tivesse as pessoas ricas (porque eu já tinha umas pequenas idéias a esse respeito), se não houvesse pessoas ricas nós não teríamos nada para comer. Os ricos têm responsabilidades". Minha mãe venerava gente rica, percebe. Então, o que é que se pode esperar, isso me contagiou também. Eu não estava inteiramente convencido. Não, Mas não ousava ter uma opinião, não, não. Minha mãe, que vivia mergulhada nas rendas até o pescoço, jamais sonharia em usar alguma. Isso era para os fregueses. Nunca. Não era feito para nós, entende. Nem mesmo o joalheiro, ele não usava jóias, a mulher do joalheiro nunca usou jóias. Eu era um dos seus garotos de recado. No Robert, na rue Royale; no Lacloche, na Rue de la Paix. Eu era muito ativo naqueles dias. O, la la! Fazia tudo muito depressa. Agora estou cheio de gotas, mas naqueles dias costumava ser mais rápido que o metrô. Nossos pés sempre doíam. Meus pés sempre doeram. Porque nós não mudávamos de sapato com muita freqüência, você sabe. Nossos sapatos eram muito pequenos, e nós estávamos crescendo. Eu fazia todas as minhas tarefas a pé. Sim... Consciência social. .. Quando eu estava na cavalaria, ia às festas de caça do príncipe Orloff e da duquesa de Uzès, e nós costumávamos segurar os cavalos dos oficiais. Isso era o mais longe a que se chegava. Puro gado, nós éramos. Claramente compreendido, é lógico, esse era o pacto.

- Sua mãe teve muita influência sobre o senhor?


L.F. Céline: Tenho o caráter dela. Muito mais do que qualquer outra coisa. Ela era muito severa, era impossível, aquela mulher. Devo dizer que possuía um certo temperamento. Não desfrutava a vida, é tudo. Sempre preocupada e sempre atordoada. Trabalhou até o último minuto de sua vida.


- Como ela o chamava? Ferdinand?


L.F. Céline: Não. Louis. Ela queria me ver num grande magazine, no Hôtel de Ville, no Louvre. Um encarregado de compras. Isso era o ideal para ela. E meu pai pensava o mesmo. Porque ele tinha tido tão pouco sucesso com o seu diploma de literatura! E meu avô tinha feito doutorado! Eles tinham tido muito pouco sucesso, costumavam dizer; comércio, ele vai se dar bem no comércio.


- Seu pai não poderia ter tido uma posição melhor lecionando?


L.F. Céline: Sim, pobre homem, mas veja o que aconteceu: ele precisava de um diploma de licenciatura e tinha apenas um diploma de formação geral, e . não podia continuar porque não tinha dinheiro algum. Seu pai tinha morrido e deixado esposa e cinco filhos.


- E seu pai morreu tarde na vida?


L.F. Céline: Morreu quando Voyage foi publicado, em 32.


- Antes que o livro saísse?


L.F. Céline: Sim, pouco antes. Ah, ele não teria gostado. Além disso, era ciumento. Não me via como um escritor de modo algum. Nem eu mesmo, afinal de contas. Concordávamos pelo menos num ponto.


- E como sua mãe reagiu aos seus livros?


L.F. Céline: Achava que eram perigosos, obscenos e que trariam problemas. Viu que aquilo ia terminar muito mal. Tinha uma natureza prudente.


- Ela leu os seus livros?


L.F. Céline: Ah, ela não podia, não estava ao seu alcance. Teria achado tudo muito vulgar, e também não lia livros, não era o tipo de mulher que lê. Não tinha vaidade alguma. Continuou trabalhando até morrer. Eu estava na prisão. Ouvi dizer que ela tinha morrido. Não, eu tinha acabado de chegar a Copenhague quando soube de sua morte. Uma viagem terrível, vil, sim - a orquestração perfeita. Abominável. Mas as coisas só são abomináveis de um lado, não esqueça, hein? E, você sabe... a experiência é uma lâmpada fraca que só ilumina aquele que a carrega... e incomunicável... Tenho que manter isso para mim mesmo. Para mim, você só tinha o direito de morrer quando tivesse uma boa história para contar. Para entrar, você conta a sua história e passa. Isso é o que Morte a crédito significa, simbolicamente. a recompensa da vida sendo a morte. Vendo que... não é o bom Deus que rege, é o demônio. O homem. A natureza é repugnante, olhe só para ela, a vida dos pássaros, a vida animal.

- Alguma vez o senhor foi feliz em sua vida?


L.F. Céline: Muito feliz, nunca, acho. Porque o que você precisa, quando fica velho... Acho que, se me dessem bastante grana para ficar a salvo das necessidades. .. eu adoraria isso. . . eu me daria a oportunidade de me aposentar e ir a algum lugar, daí eu não teria que trabalhar e poderia ficar observando os outros. A felicidade seria estar sozinho à beira-mar e ser deixado em paz. E comer muito pouco; sim. Quase nada. Uma vela. Eu não viveria com eletricidade e trecos. Uma vela! Uma vela, e aí eu leria o jornal. Os outros, eu os vejo agitados, acima de tudo excitados por ambições, a vida deles é um show, uma intensa troca de convites para continuar a performance. Já vi isso, vivi entre pessoas da sociedade uma vez - "Eu digo, Gontran, ouça o que ele lhe disse; ah, Gaston, você estava realmente em forma ontem, eh! Mostrou a ele o que é o que, hein! Ele me contou novamente ontem à noite! Sua mulher dizia: ah, Gaston nos surpreendeu!" É uma comédia. Passam seu tempo nisso. Caçando-se uns aos outros, encontrando-se nos mesmos clubes de golfe, nos mesmos restaurantes.


- Se pudesse passar por tudo de novo, o senhor procuraria suas alegrias fora da literatura?


L.F. Céline: Ah, absolutamente! Não peço alegria. Não sinto alegria. Desfrutar a vida é uma questão de temperamento, de dieta. Você tem que comer bem, beber bem, daí os dias passam depressa, não? Coma e beba bem, dê um passeio de carro, leia alguns jornais, o dia logo se acabou. O seu jornal, algumas visitas, o café da manhã, meu Deus, já está na hora do almoço quando você acabou de dar o seu passeio, hein? Veja alguns amigos à tarde, e o dia se acabou. À noite, cama, como sempre, e olhos fechados. Aí está. E ainda mais assim, com a idade, as coisas vão mais depressa, não vão? Um dia é infinito quando você é moço, ao passo que, quando se está velho, bem cedo ele se acaba. Quando se está aposentado, um dia é um lampejo, quando se é garoto, passa muito devagar.


- Como preencheria o seu tempo se estivesse aposentado e com renda?


L.F. Céline: Eu leria o jornal. Daria um pequeno passeio num lugar onde ninguém pudesse me ver.


- Pode passear por aqui?


L.F. Céline: Não, nunca, não! Melhor não!


- Por que não?


L.F. Céline: Eu seria notado. Não quero isso. Não quero ser visto. Num porto, você desaparece. No Havre.. acho que não notariam um camarada nas docas do Havre. Você não nota nada. Um velho marinheiro, um velho louco...


- E o senhor gosta de barcos?


L.F. Céline: Ah, sim! Sim! Adoro observá-los. Observá-los ir e vir. Eles e o quebra-mar, e eu; fico feliz. Eles soltam fumaça, vão embora, voltam, não é da sua conta, hein? Ninguém lhe pergunta nada! É, e você lê o jornal local, Le Petit Havrais, e... e é isso. Isso é tudo. Ah, eu viveria minha vida de novo de modo diferente.


- Houve, alguma vez, pessoas exemplares para o senhor? Pessoas que o senhor gostaria de ter imitado?


L.F. Céline: Não, porque tudo isso é magnificente, tudo isso; não quero ser magnificente de modo algum, desejo nenhum por tudo isso, só quero ser um velho ignorado. Essas são as pessoas das enciclopédias, não quero isso.


- Quero dizer pessoas que o senhor possa ter encontrado na vida de todo dia.


L.F. Céline: Ah, não, não, não, as vejo sempre ferrando os outros. Elas me dão nos nervos. Não. Aí eu tenho uma espécie de modéstia da minha mãe, uma insignificância absoluta, verdadeiramente absoluta! Aquilo em que estou interessado é ser completamente ignorado. Tenho um apetite, um apetite animal por reclusão. Sim, eu gostaria bastante de Boulogne, sim, Boulogne-sur-Mer. Estive muitas vezes em Saint-Malo, mas isso já não é mais possível. Sou mais ou menos conhecido lá. Lugares a que as pessoas nunca vão...



            (Última entrevista de Céline, 1." de junho de 1961)



- O amor tem muita importância nos seus romances?


L.F. Céline: Nenhuma. Não se precisa disso. É preciso ser modesto quando se é romancista.


- E a amizade?


L.F. Céline: Não mencione isso também.


- Bem, o senhor acha que deve se concentrar em sentimentos sem importância?


L.F. Céline: Você tem que dar conta do recado. É tudo o que conta. E, além do mais, com muita discrição. Fala-se disso com muita, mas muita publicidade. Somos apenas objetos de publicidade. É repulsivo. Tempo virá em que todo mundo tomará uma cura de modéstia. Em literatura como em tudo o mais. Estamos infetados pela publicidade. É realmente ignóbil. Não há nada a fazer senão dar conta do recado e calar-se. Isso é tudo, O público o olha, não o olha, lê ou não lê, e isso é problema dele. O autor tem apenas que desaparecer.

- O senhor escreve por prazer?

L.F. Céline: De jeito nenhum, absolutamente não, Se tivesse dinheiro nunca escreveria. Artigo número um.


- Escreve por amor ou ódio?


L.F. Céline: Ah, de jeito nenhum! É problema meu, se aprovo esses sentimentos de que você está falando, amor e amizade, mas não é problema do público!


- Seus contemporâneos lhe interessam?


L.F. Céline: Ah, não, de jeito nenhum. Eu me interessei por eles uma vez para tentar impedi-los de correrem para a guerra. De qualquer modo, eles não foram para a guerra, mas voltaram carregados de glória. Bem, quanto a mim. meteram-me na prisão. Eu me meti em apuros ao me importar com eles. Não devia ter me importado, Só tinha a mim mesmo com que me importar.


- Em seus últimos livros ainda há um certo número de sentimentos que o revelam.


L.F. Céline: Você pode revelar a si mesmo de qualquer maneira. Não é difícil.


- Está dizendo que quer nos persuadir de que não há nada de mais intimamente seu em seus últimos livros?


L.F. Céline:  Ah, não, íntimo, não, nada. Pode haver uma coisa, uma única coisa, que é que eu não sei como gozar a vida. Tenho uma certa superioridade sobre os outros, que são, no fim das contas, podres, já que estão sempre gozando a vida. Gozar a vida, isto é, beber, comer, arrotar, foder, um monte de coisas que deixam um cara vazio ou tolerante. Eu não sou um gozador, de jeito nenhum. Então, bem, isso funciona muito bem. Sei selecionar. Sei provar, mas, como diz o romano decadente: Não é só ir ao bordel, é não sair de lá que conta, não é? Eu estive lá - toda a minha vida nos bordéis, mas saía de lá depressa. Não bebo. Não gosto de comer. Tudo isso é para os merdas. Tenho o direito, não tenho? Tenho só uma vida: é dormir e que me deixem sozinho.

- Quem são os escritores em quem o senhor reconhece um verdadeiro talento literário?


L.F. Céline:  Há três pessoas que eu sentia, no grande período, que eram escritores. Morand, Ramuz, Barbusse eram escritores. Tinham o pique. Foram feitos para isso. Mas os outros não são feitos para isso. Pelo amor de Deus, são impostores, são um bando de impostores, e os impostores são os mestres.


- Acha que ainda é um dos maiores escritores vivos?


L.F. Céline:  Ah, de jeito nenhum! Os grandes escritores... não tenho que sair por aí lidando com adjetivos. Primeiro você tem que morrer, e, quando você está morto, daí eles o classificam. A primeira coisa que você tem que estar é morto.


- O senhor está convencido de que a posteridade lhe fará justiça?


L.F. Céline: Mas, Deus meu, não estou convencido! Deus meu, não! E talvez não vá nem existir uma França então. Serão os chineses ou os bárbaros que farão o inventário, e vão ficar bem intrigados com a minha literatura, meu estilo de trama e as minhas reticências... Não é difícil. Eu terminei, já que estamos falando de "literatura". Eu terminei. Depois de Morte a crédito eu disse tudo, e não era muito.


- O senhor detesta a vida?


L.F. Céline: Bem, não posso dizer que a adoro, não. Eu a tolero porque estou vivo e porque tenho responsabilidades. Sem isso, sou bem da escola pessimista. Tenho que esperar alguma coisa. Não espero nada. Espero morrer tão sem dor quanto possível. Como todo mundo. Isso é tudo. Que ninguém sofra por mim, por minha causa. Bem, morrer em paz, hein? Morrer, se possível, de uma infecção ou, bem, eu mesmo acabo comigo. Isso ainda seria de longe o mais simples. O que está por vir, isso é o que vai ser mais e mais difícil. Agora eu trabalho muito mais dolorosamente do que há apenas um ano, e o ano que vem vai ser mais árduo que este ano. Isso é tudo.




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J. DARRIBEHAUDE, J. QUENOT, ANDRÉ PARINAUD e CLAUDE SARRAUTE

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Caso Céline ou a vigilância platônica contra os poetas, por Leda Tenório da Motta

Os poetas gementes narram acontecimentos atrozes, inventam diálogos terríveis, supõem os deuses transportados, culpam-nos por todos os males existentes na terra, provocam o ânimo lamurioso, atentam contra a temperança, desencorajam os que lutam...  Eis por que é preciso tirar-lhes o direito de mentir, afugentar as fábulas que fazem temer a morte, adotar imitadores capazes de modelar a alma dos jovens, estabelecer um plano de educação para a cidade. Assim escreve Platão, no Livro III de A República, aparentemente esquecido de que a sua própria filosofia é uma dramaturgia, de tal modo que é a personagem Sócrates quem fala, dirigindo-se, depois disso, à personagem Adimanto, para arrematar: “Para nosso uso, teremos de recorrer a um poeta ou contador de histórias mais austero e menos agradável, que corresponda aos nossos desígnios, só imite para nós o estilo do homem comedido e se restrinja na sua exposição a copiar os modelos que desde o início estabelecemos por lei, quando nos dispusemos a educar nossos soldados”. [1]
Mais de dois mil anos depois, é tentador pensar que os mesmos motivos se reencenam, quando outra excelente filosofia, que também recorre à dramaturgia, e também sonha com uma república dos justos, sentindo-se igualmente interpelada pelos excessos da poesia, volta a decretar a sua expulsão para fora dos muros. Não menos notável é que as desmesuras aqui em questão parecem ser, no fundo, as mesmas que levavam o governante-filósofo do passado a almejar a representação tão somente do bom e do belo.
De fato, é o que o desencontro entre Sartre e Céline nos convida a conjecturar. Primeiro, porque a pintura mais que gemente de Céline é de tal modo excessiva que cabe com perfeição no rol dos vícios platônicos. Como terá percebido quem quer que tenha aberto qualquer página deste autor, mesmo que, escolhida ao léu, ela pertença ao que se considera, hoje, ser uma primeira fase da monumental obra celiniana, em que ainda não se cristalizou o estilo da imprecação, nem se fixou aquele narrador que surge ex abrupto, conversando consigo mesmo e fazendo o cômputo de sua vida desastrosa, tema baixo que é o leitmotiv das obras-primas finais, assim desencadeadas: “para falar francamente, muito cá entre nós, eu termino ainda pior do que comecei”. [2] Trata-se, como ressaltaram alguns, de um estilo particular para um mundo particular, o mundo das duas guerras mundiais que abrem o século xx, “immense, universelle moquerie”, [3] que o escritor pôde observar de muito perto, já que esteve particularmente ligado a elas, seja lutando na primeira, o que lhe valeria um ferimento na cabeça, seja inclinando-se, na segunda, como um anti-herói, ao espírito de Vichy. Isso pede a mão de um colorista de tons fortes, menos interessado em ideias que na emoção, capaz de fazer no terreno das palavras o mesmo que os impressionistas e os pontilhistas que “arejaram e fizeram a pintura levantar voo”, como ele mesmo dirá, referindo-se com isso ao fato de que os pontilhistas, que vieram dos impressionistas, foram os precursores da violência fauve. [4]
Segundo, porque, imbuído como estava do papel de maître à penser, e empenhado na reconstrução da França que sai da República de Vichy, Sartre vai inscrever o nome de Céline na lista negra de uma das revistas do século xx: Les Temps Modernes. “Se Céline pôde defender as teses sociais dos nazistas, é que era pago para isso”, formula ele liminarmente em 1945, em um “Portrait de l’antisémite” que é preparado para o número inaugural do prestigioso periódico. Jamais comprovada, e hoje sabidamente falsa, a denúncia reaparece, um ano depois, na abertura das Réflexions sur la question juive, em meio à demonstração sartriana do caráter maniqueísta do antissemita, que, nos termos do filósofo, menos acredita no que pensa sobre os judeus e a conspiração judaica mundial do que precisa disso para explicar o mundo malfeito, imputando-o ao outro. Céline é um catastrofista desse tipo, escreve Sartre. [5] Em nome do ideal de uma literatura engajada, que ele recebe de André Gide, está assim lançado o anátema.


O asno de óculos

Disseminada no campo espiritual do pós-guerra, desde suas fileiras mais bem-pensantes, a denúncia prospera, e eis o escritor banido, como Homero, Hesíodo e Píndaro por Platão. Com a diferença da réplica, que, neste caso, conhecemos. “Que que você quer? Que me assassinem?”, responde o poeta ao filósofo, que ele chama de “asno de óculos”, naquele francês curto e grosso que é a sua marca registrada. Isso está em uma carta mandada do exílio, em que se encontra desde a Liberação, intitulada, o mais poeticamente, À L’agité du bocal (o cara com a boca no trombone?). Editada por um amigo fiel, em uma plaquete datada de 1949, [6] contendo este e outros textos celinianos do período, hoje acessáveis na internet, ela circula por Paris como um direito de resposta da poesia, em um momento mais que delicado da história francesa – e da história da literatura francesa –, em que, por crime de escritura, executam-se autores e editores caídos em desgraça. É o que acontece com Robert Denoël, o jovem belga que se tornara o publisher de Voyage au bout de la nuit (1932), Mort à crédit (1936) e dos Panfletos celinianos – Mea culpa (1936), Bagatelles pour un massacre (1937), L’école des cadavres (1938), Les beaux Draps (1941), opúsculos contendo, entre outras coisas, e mais que qualquer coisa, um delírio antissemita, que radicaliza um discurso típico da França política que se tornaria colaboracionista. Dentre esses escritos, que resumem a obra até aí conhecida, os Panfletos – um gênero na verdade nobre, antes de adquirir o significado que tem hoje, e, aliás, praticado pelos surrealistas, no encalço de Sade [7] –, são aquela parte a que se refere Sartre, antes disso um leitor de Voyage tão entusiasta quanto toda a esquerda francesa. [8]
Proibida de circulação desde 1945, por sua injúria racial, essa retórica virulenta que, para alguns estudiosos, não é desprezível estilisticamente, nem deve ser atribuída a nenhuma ambição de convencimento, mas entendida como puro dispêndio verbal, também está hoje, para o bem e para o mal, ironicamente disponível na internet. Pode ainda ser consultada em um Centre Céline da Universidade de Paris VII, reduto de novos críticos criado no correr dos anos de 1980, em que se ousa pensar que é “de uma beleza selvagem”, [9] e até mesmo a associá-la à fatura do melhor Céline, o do último ciclo romanesco, que os especialistas chamam de trilogia alemã: D’un chateau l’autre (1957), Nord (1960) e Rigodon (1961).


Céline como objeto pensável

Mas nada disso levanta o veto de Sartre. Tanto assim que teremos de esperar os anos de 1960, e a entrada em cena de outra revista francesa do século – a Tel Quel –, com sua predileção pelos poderes subversivos da literatura, em vez dos construtivos, e sua galeria de autores intratáveis, para que, ao lado de Artaud, Georges Bataille, Proust e Francis Ponge, Céline comece a se tornar um objeto pensável. É ao grupo reunido em torno de Philippe Sollers, plataforma amalgamada a outra surgida mais ou menos no mesmo momento, a da “nouvelle critique”, que devemos um progressivo e corajoso enfrentamento dessa verve perigosa, em plena vigência da autoridade sartriana.
É graças à ação da Tel Quel, de par com colaboradores célebres tais que Roland Barthes, Gérard Genette e Julia Kristeva, e menos célebres, mas não menos aguerridos, tais que Henri Godard – o estabelecedor do texto dos romances de Céline para a coleção Pléiade da editora Gallimard – e Jean-Louis Houdebine – que viu no grande ataque de Céline a judeus e não judeus uma “arte do contratempo”, cultivada por todos os grandes cronistas clássicos, de Madame de Sévigné a Saint-Simon, que também escreveram no isolamento [10] –, que podemos reconhecer hoje, com certa tranquilidade, o lugar que esse romancista das duas grandes guerras mundiais, que as monumentalizou, como um Homero contemporâneo, ocupa, não apenas na história da literatura francesa, mas na história da literatura em termos absolutos.
De fato, note-se, a propósito, como já existe um desacato a Sartre, tão elíptico quanto marcante, em Le dégré zero de l’écriture,um dos primeiros livros deBarthes, publicado em 1953, ainda em vida de Céline. Aí, de saída, ele menciona o impronunciável nome do colabo, quando, assinalando a necessidade que tem o escritor moderno de situar-se na linguagem, porque não existe, justamente, o grau zero, o insere, a título de ilustração, entre alguns vultos das letras francesas. “Quase contemporâneos, Mallarmé, Céline, Gide e Queneau, Claudel e Camus, que falaram ou falam o mesmo estado histórico de nossa língua, valem-se de escrituras profundamente diferentes”, escreve Barthes. [11] Sabemos hoje, graças às obras póstumas barthesianas, que, se o crítico põe Céline ao lado de Camus, nem por isso vê aí grandezas iguais. Recuperada em um recente volume de inéditos, existe uma troca de farpas entre ele e o autor de A peste, em que deixa claro que não aprecia a maneira como Camus põe o tema da peste a serviço da moral da Resistência, fazendo dela uma metáfora política. “Pessoalmente, [...] acredito numa arte literal [...] em que as pestes não são nada mais que pestes, e em que a Resistência é toda a Resistência”, escreve ele a Camus. [12] Não se poderia esperar outra coisa de alguém tão ligado à corrente crítica que reabilitou Artaud, que, bem ao contrário de Camus, para quem a cidade deve ser salva da peste, o teatro é por definição pestilencial, a crueldade, uma encenação irrealista e convulsa, que recusa a dignidade intelectual da representação. [13]


O verdadeiro pai: um judeu

Sem ter-lhe dedicado nenhuma longa reflexão – ao contrário de Kristeva, que trabalha com a hipótese de um Céline borderline, cujo substrato fantasmático a interessa e se torna o ponto culminante de um de seus melhores livros – Pouvoirs de l’horreur. Essai sur l’abjection (1980) –, Barthes desde então voltaria muitas vezes ao autor dos Panfletos. De tal modo que o surpreenderemos falando de Céline, nada mais, nada menos, que em sua aulainaugural de 1977 no Collège de France.Isso acontece no trecho do famoso speech, depois recolhido em livro, em que relembra que a “escritura” é um comprometimento do escritor unicamente com sua língua, e a língua do escritor, uma espécie de idiotismo, e desta vez, sim, equipara Céline a alguns grandes homens de letras do passado, indo direto, aliás, à questão política aí envolvida. Esse trecho diz o seguinte: “As forças de liberdade que estão na literatura não dependem da pessoa civil, do engajamento político do escritor, nem mesmo do conteúdo doutrinal de sua obra, mas do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua: desse ponto de vista, Céline é tão importante quanto Hugo, Chateaubriand quanto Zola”. [14]
Além dessas referências explícitas, e até onde pudemos pesquisar, há duas outras na última rodada de conferências de Barthes no Collège de France, pronunciadas em 1979 e hoje reunidas em La préparation du roman (2003). Em uma primeira, o escritor é associado a Artaud, e indiretamente a Proust, quando, falando nos diferentes regimes de vida dos autores, e evocando o exílio de Proust em seu quarto, ele pergunta: “Acaso imaginaríamos um Céline, um Artaud precisando de uma boa lareira para escrever?”. Em uma segunda, é a língua vulgar de Céline – sua escrita da fala, captada ao vivo, como dirão os pesquisadores de Paris VII, tomando o cuidado de acrescentar que isso não se confunde com nenhuma empreitada naturalista – que é trazida a campo, para referendar a briga dos modernos com quaisquer traços do beletrismo. Barthes lembra, nesse ponto, que Céline costumava ironizar o “style de bachot” (o estilo do professorzinho que ensina os autores do programa nas escolas), incluindo nesse linguajar a frase francesa de Voltaire, Renan e Anatole France. [15]
É essa recepção, por certo, que explica a entrada de Céline em 1961, pouco antes de sua morte, na prestigiosa coleção Pléiade da editora Gallimard, que já tinha recusado Proust quarenta anos antes, para depois se retratar, e já tinha feito o mesmo com o autor de Voyage no início da década de 1930, terminando por incorporá-lo nos anos de 1960. A edição crítica do texto dos romances de Céline está hoje, na Pléiade, na altura do quarto tomo. Trata-se do resultado de uma revisão em que se empenhou toda uma brilhante geração, sob a batuta de Sollers, que participa ativamente do processo, não apenas como insuflador da revolta telquelienne, que continuaria a partir dos anos de 1980 em uma nova revista do grupo, a L’Infini, mas como estudioso e apresentador da imensa correspondência trocada entre o escritor e a Gallimard, desde suas primeiras tentativas frustradas de ingressar nesse catálogo prestigioso, até por considerá-la parte da melhor epistolografia francesa. [16]
Toda essa movimentação dos semiólogos repercute junto a outra plataforma de novíssimos, nascida nesses mesmos anos de 1950: a escola dos Cahiers du Cinéma, cujos homens acompanham a revolução dos críticos literários, os quais, por sua vez, também descobrem a nouvelle vague. [17] Como se pode depreender de uma surpreendente menção de François Truffaut a Céline no prefácio de 1966 à primeira edição de seu Hitchcock Truffaut. Ele repete aí os desagravos de Barthes, quando, já no final da apresentação do volume que se transformaria na bíblia dos cinéfilos, para realçar o voyeurismo de seu mestre, põe Céline lado a lado com Hitchcock e escreve: “Louis-Ferdinand Céline dividia as pessoas em duas categorias, os exibicionistas e os voyeurs, e é evidente que Hitchcock pertence à segunda categoria”. [18]
A evocação do nome amaldiçoado pela gauche na abertura do hitchbook é tão mais surpreendente quanto Truffaut descobre, já na idade adulta, que é filho adotivo da família que sempre acreditou ser a sua família legítima, e que seu verdadeiro pai era um judeu, que teve de se esconder durante a Segunda Guerra. É esse trauma infantil que, de modo cifrado, está recolhido no ciclo Doineul, como mostraram os biógrafos, e depois deles os cultores do realizador. [19]


Um money maker vulgar

Ora, o que há de especial nisso é que tudo se passa na mesma França por onde o autor dos Panfletos, há pouco, difundia seus delírios sobre o outro judeu, e onde este filho de pai judeu está, agora, mais atento à arte que à vida dos artistas, inclusive daqueles que injuriaram os judeus. Note-se, a propósito, que o próprio Hitchcock tinha sido posto no limbo pelos críticos nova-iorquinos, por pertencer ao sistema dos estúdios de Hollywood, e pelo mesmo motivo que está na base da acusação de Sartre a Céline, já que o ponto de Sartre é a venalidade do escritor. Do mesmo modo que Hitchcock, antes da intervenção dos homens dos Cahiers, é tido, na costa leste americana, por um money maker vulgar, que enriqueceu fazendo um cinema comercial. O que essa concatenação Céline & Hitchcock ressalta assim, pois, é o embate entre crivos críticos de que dependeu a sorte de alguns criadores importantes do século xx, geniais mas posicionados do lado errado da História. Temos, deste lado, os que passam por cima de considerações estranhas à trama interna das obras, interessando-se, metodologicamente, por linguagens; de outro, os que leem as obras, à la Sainte-Beuve, desde a exterioridade da história que cerca a vida dos autores. Essa é toda a briga entre semiólogos da École des Hautes Études e sociólogos sorbonistas a propósito de como ler Racine, que está na origem rumorosa da nouvelle critique. [20]
Acrescente-se que essa tradição crítica compreensiva representada pelos semiólogos, que revê o cânone da literatura francesa contemporânea, incorporando-lhe os malditos novecentistas, é caudatária das perspectivas críticas de ninguém menos que Walter Benjamin. Pois, antes de todos estes de que estamos falando, e por imprevisível que isso também seja, Benjamin já cita Céline, já o inclui, já lhe dá existência. E do modo mais incisivo: armando uma ponte entre ele e Baudelaire, ou fazendo Céline conversar com Baudelaire, do mesmo modo que Truffaut faz Céline dialogar com Hitchcock, e Barthes, com Proust e Artaud. Como poderá constatar quem abrir seu mais notável trabalho, o inacabado e inacabável Livro das passagens, que se acha, desde 2005, traduzido para o português do Brasil com o título Passagens. Ali, no arquivo temático “Baudelaire”, no qual Benjamin trabalhou, em Paris, ao longo dos anos 1937-1938, em plena era dos Panfletos, ele cita uma das muitas provocações politicamente incorretas do poeta em seu diário Mon coeur mis à nu, um breve fragmento que encerra um voto antissemita de Baudelaire, assim formulado: “Bela conspiração a organizar para o extermínio da raça judaica”. [21] Detendo-se sobre esse convite, não à viagem mas à passagem ao ato persecutório, Benjamin anota conscienciosamente em seu arquivo: “Céline deu prosseguimento a esta linha”. [22]
É uma menção comovente, não só por vir de quem sofreu na pele a perseguição movida aos judeus, mas porque o que Baudelaire sonha assim, em voz alta, seria realidade no final do mesmo século em que ele escreve, com a eclosão do Caso Dreyfus, que Hannah Arendt chamou de “prelúdio ao nazismo”. [23] Além do mais, se quisermos dar todo o valor a essa inesperada nota, talvez seja preciso ouvir aí que Céline descende de Baudelaire. O que não contradiz a visão que o próprio Céline tem de si, embora ele tenha reivindicado a influência de Proust quase tão claramente quanto reivindica a dos pontilhistas e a dos surrealistas, de resto, no mesmo momento, ao sublinhar que o bom escritor é também aquele que sabe lançar mão do que a vida tem para lhe oferecer, que, nesse sentido, Proust estava “na linha dos salões”, enquanto ele, Céline, estava na das guerras. [24] Ele mostra assim, por certo, o quanto quer ombrear-se com Proust. Mas Baudelaire não está longe, se admitirmos que Proust deve mais a Baudelaire que só a memória afetiva. Deve-lhe todo o continente das sensibilidades doentias, toda aquela degenerescência que a mãe e a avó proustianas consideram prejudiciais ao jovem narrador, e a Sra. de Villeparisis, ao seu salão, todas sabendo que isso é influência dos cenáculos deliquescentes em que se cultiva o poeta das Flores do mal. [25] Estamos em uma mesma família de espíritos. Outra prova é que Benjamin faz-se o tradutor e o intérprete de ambos: Baudelaire e Proust.
Se, neste embate entre filosofias, a voz partida de Benjamin atenua a voz sonora de Sartre, salvo engano não existe muito mais que isso como fortuna crítica não aversiva a assinalar. O que se compreende, pois o século será, progressivamente, dos que se pautam pela divisa da lembrança do Holocausto. Dever de memória cuja imposição não vem só de Adorno, o companheiro de Benjamin, que, como se sabe, entendeu reiterativamente o Holocausto como a culminância da História catastrófica, e o pôs no centro de sua reflexão sobre as artes, notadamente a arte da palavra, a poesia. Mas de uma corrente de força tão influente quanto a adorniana, que, de resto, muito se refere a Adorno, aquela representada pelas assim chamadas “literaturas de testemunho” e pelos estudos em torno do tema “catástrofe e representação”.


A vigilância platônica sobre os poetas

E o que é digno de nota é que essa outra corrente parte da seara mesma de Sartre. De fato, uma de suas fontes é Claude Lanzmann,seguidor de Sartre, amigo de Simone de Beauvoir, cofundador, juntamente com o casal, da Le Temps Modernes, e diretor da revista nos anos de 1960 e 1970, antes de voltar-se para o cinema e fazer, nesse campo, uma de suas mais impressionantes revoluções.
Referência paradigmática daqueles outras plataformas críticas interessados nas correlações entre literatura e trauma, Lanzmann é o realizador de Shoah, memorável longa-metragem de 10 horas de duração, que demandou anos de pesquisa de campo antes de ser lançado em Paris, em 1985. Nesse filme estarrecedor, pela primeira vez a realidade dos Lager é mostrada através de depoimentos diretos, e não de documentos de arquivos. Dirigidos com firmeza por Lanzmann, falam aí, longa e perturbadoramente, diante de uma câmera, no mais das vezes estática, que dá ao filme uma dimensão teatral, sobreviventes judeus encontrados por toda a Europa, carrascos nazistas e poloneses testemunhas oculares dos fatos. É esse trabalho colossal desse seguidor de Sartre, em que Beauvoir, reconhecendo a mão do artista, veria “uma mistura de horror e poesia”, [26] que vai introduzir a nomeação “shoah”, palavra hebraica que significa catástrofe, desde então preferida a “holocausto”, por ser um apelativo menos sacrificial. É ele também que, associado à obra mais notória do italiano Primo Lévi – É isto um homem? (1947) –, impulsiona uma safra de narrativas sobre os campos de extermínio, que, desde então, não cessam de nos chegar. Essa produção mobiliza, por seu turno, cada vez mais, estudiosos que, referindo-se aos ensaios de Freud sobre as neuroses de guerra, pautam-se por pensar que sem catástrofe não há representação, e por admitir que a catástrofe absoluta é a “shoah”, o que conecta, de pronto, a mais alta literatura a essa precisa missão testemunhal.
Não é de estranhar que, sob o amparo de Lanzmann, ganhe força a vigilância platônica sobre os poetas. Isso faz recuar, novamente, as chances de Céline na França, e explica o fato de o escritor ser quase completamente desconhecido no Brasil, onde os críticos da “catástrofe e representação” são brilhantes e ativos, [27] e onde Céline inexistiria não fosse o trabalho tradutório de Rosa Freire d’Aguiar, [28] que realiza o impossível ao verter com extrema eficiência o parigot celiniano. Língua tão pouco convencional, tão capaz de “tirar as palavras do eixo” – para lembrar palavras do próprio Céline [29]–, que Henri Godard achou bom providenciar um Vocabulaire populaire et argotique para figurar em apêndice a todos os tomos dos Romans.
Devemos também à tradutora a audácia de tomar Céline pela palavra e de colocá-lo “na linha de Proust”, como faz na sua introdução a Viagem, ao dizer que “tudo o que em Proust era delicadeza, fineza, meios-tons, harmonia, em Céline é grosseria, crueza, violência, deformação”, e que “foi este o grande achado de Céline, ser um Proust da plebe, segundo um crítico da época”. [30]
Em que pese este seu retrato de Proust ser idealizado – a fineza, a delicadeza, a harmonia ... –, ela tem razão. Até porque, ao lado das reticências, que tanto o caracterizam, e que também o levam a remeter-se ao pontilhismo – “Seurat punha três pontos em tudo” [31] –, e dos pontos de exclamação – que se multiplicam em seu texto vazado e reduzem a longa frase proustiana a enunciados curtíssimos, revertendo a puxada de ar proustiana em fôlego nenhum –, a hipérbole é a figura que mais recorre na letra do texto de Céline. E ela tem aí a mesma função que tem em Baudelaire, defensor da caricatura e do riso que a acompanha: a função sempre melancólica de conduzir para baixo. [32] Tome-se uma sequência de Nord, romance escrito na França em 1957, na volta do exílio, cuja ação se passa em Berlim, em 1944, às vésperas da tomada da cidade, em que o narrador, a mulher e um amigo vão tirar a fotografia para o visto de permanência na Alemanha, e as caras nas fotos ensejam a Céline dizer: “Lili, moi, La Vigue, on a changé de tronches! ... le flic de la Polizei a raison... je m’ocuppe pas beaucoup de ma figure, mais là vraiment de quoi s’amuser! ... des yeux, des calots qui ressortent ... et puis des joues du tout!... des bouches flasques... comme des noyés... tout les trois!... on est vraiment devenus horribles... trois monstres... pas niable!... comment on est passé monstres?”. [33] Não poderia haver representação mais perfeita de uma catástrofe pessoal.
Mas a tradutora tem principalmente razão porque essa afirmação corajosa, que põe Céline no topo da literatura, justamente por ousar derrubar o melhor modelo literário disponível, tem a vantagem de chamar a atenção para o memorialismo de Céline, que, de fato, é proustiano. Primeiro, porque, a partir de determinado momento, a crônica memorial celiniana, que em Voyage, onde fala certo Robinson,se verte em terceira pessoa, vai se tornando puro solilóquio, e a única coisa palpável que se tem é a mesma que nos propõe Proust: o fio de voz. Segundo, porque, como acontece em Proust, o presente, o passado e o futuro estão aqui entrecruzados e confundidos, de tal modo que, lendo Céline, também não podemos saber de onde fala o narrador, se de Baden-Baden, para onde refluiu a República de Vichy, quando os aliados entraram na França, se da prisão na Dinamarca, onde o escritor em fuga da Alemanha é alcançado pelas autoridades franceses e preso, ou se de Meudon, subúrbio parisiense em que o médico-escritor abre seu último consultório e escreve suas derradeiras impressões sobre a tragédia de sua existência. Terceiro, porque, assim como Proust, sob o impacto do envelhecimento do salão Guermantes, chama de “féerie” o espetáculo do Tempo, que ele grafa com maiúscula, [34] o que Céline também faz, ocorre a Céline, perversamente, tomar a guerra como espetáculo e chamá-la “féerie”. É a palavra que vibra no título do livro que faz a ponte entre Voyage e a trilogia alemã – Féerie pour une autre fois –, muito embora, por uma questão de ritmo de trabalho, este outro depoimento colossal, dividido em duas partes – Féerie I e Féerie II –, ocupe o quarto tomo dos Romans.
Reivindicando Proust e Seurat, e de resto os refazendo, assim como Proust refaz os escritores que estão na chave de Bergotte e os pintores que supõe o ateliê de pintura de Elstir, Céline diz muito a que vem. Mas como não precisamos necessariamente da opinião que o escritor tem de si mesmo para tentar compreendê-lo, talvez pudéssemos acrescentar, a esses laboratórios artísticos em que se move imaginariamente o mais importante romancista francês do século xx ao lado de Proust, outra pintura excessiva, até porque ela também tem tudo para entrar no salão dos recusados.
E se Céline, com sua escola de cadáveres, fosse, em literatura, o equivalente de um Francis Bacon?

Leda Tenório da Motta é professora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, crítica literária e tradutora. Publicou, entre outros, Proust A violência sutil do riso (Perspectiva, 2007), Prêmio Jabuti 2008 na categoria Teoria-Crítica Literária.
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Notas:
  1. Platão, A República, Livro III, 398 a. Tradução do grego de Carlos Alberto Nunes. Coordenação de Benedito Nunes. Belém: Editora Universitária EDUFPA, 2000, p. 154. Tradução cotejada com a edição francesa da Belles Lettres, Paris, 1948, pp. 191-192.
  2. Essa é a abertura de D’un chateau l’autre. Romans II. Paris: Gallimard-Pléiade, 1974, p. 3.
  3. Céline, Voyage au bout de la nuit, Romans I, op. cit., p. 12.
  4. Os verbos aqui empregados são “aérer” e “voltiger”. Cf. Céline, “Louis-Ferdinand Céline vous parle”, texto transcrito a partir de um depoimento gravado em 1957, inserido em apêndice ao Romans II, p. 934.
  5. Jean-Paul Sartre, Réflexions sur la question juive. Paris: Gallimard, 1954, pp. 47-48. Col. Idées.
  6. Albert Paraz, Le gala des vaches. Paris: Lanauve de Tartas, 1948.
  7. De fato, note-se que o entremeio “Franceses mais um esforço ....”, que se insere entre os diálogos em A filosofia na alcova, é um panfleto. Trata-se de uma forma polemizante de que muito se valerão os surrealistas em seus textos de combate.
  8. Sobre a fortuna crítica dos primeiros romances de Céline, cf. o capítulo “Céline” de meu Lições de literatura francesa. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
  9. Julia Kristeva, Pouvoirs de l’horreur. Essai sur l’abjection. Paris: Seuil, 1980, p. 205.
  10. O crítico refere-se a autores como Villehardouin, Joinville, Agrippa d’Aubigné, Madame de Sévigné e Saint-Simon. Cf. Jean Louis Houdebine, “La poésie est-elle mortelle?”, Revue L’Infini n. 37. Printemps 1992.
  11. Roland Barthes, Le dégré zero de l’écriture. Paris: Seuil 1972, p. 15. Col. Points.
  12. Roland Barthes, “Resposta de Roland Barthes a Albert Camus”. .Inéditos, Vl. 4. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 59.
  13. Tudo isso magnificamente comentado por Jacques Derrida no capítulo “O teatro da crueldade e o fechamento da representação”, em A escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1995.
  14. Roland Barthes, Leçon. Paris: Seuil, 1977, p. 17.
  15. Roland Barthes, La préparation du roman. Cours et séminaires au Collège de France (1979-1979–1979-1980). Texte établi, annoté et présenté par Nathalie Léger. Paris: Seuil/IMEC, 2003, p. 354.
  16. Céline, Lettres à la NRF 1931-1961. Édition établie, présentée et annotée par Pascal Fouché. Préface de Philippe Sollers. Paris: Gallimard, 1991.
  17. Cf. Louis-Jean Calvet, Roland Barthes Uma biografia. Tradução de Maria Ângela Vilela da Costa. São Paulo: Siciliano, 1993, p. 163. O autor nota aí que La femme mariée (1964), de Godard, incorpora as Mitologias de Barthes.
  18. François Truffaut. Hitchcock Truffaut. Paris: Gallimard, 1993, p. 14.
  19. Antoine de Baecque, Serge Toubiana, François Truffaut Une biographie. Paris: Gallimard, 1996. Col. Gallimard-Biographies.
  20. História, como se sabe, iniciada com a publicação do livro de Barthes Sur Racine (1963), que é inteiramente retomada pelo próprio Barthes em Critique et vérité (1966).
  21. Charles Baudelaire, Mon Coeur mis à nu LXXXIII, Oeuvres Complètes. Paris: Seuil, 1968, p. 640.
  22. Walter Benjamin, “Baudelaire”, Passagens. Organização de Willi Bolle. Tradução de Irene Aron, Cleonice Paes Barreto Mourão e Patrícia de Freitas Camargo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006, p. 344.
  23. Hannah Arendt, Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 119.
  24. Céline, “Louis-Ferdinand Céline vous parle”, op. cit., pp. 931-932. Grifo meu.
  25. Marcel Proust, À l’ombre des jeunes filles em fleurs / À la recherche du temps perdu. Paris: Gallimard-Pléiade I, 1954, p. 727.
  26. Simone de Beauvoir, “La mémoire de l’horreur”, texto de introdução a Claude Lanzmann, Shoah. Paris: Fayard, 1987,pp.7-10.
  27. Vejam-se, por exemplo, os esforços de Arthur Nestrovski e Marcio Seligmann, organizadores do volume Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000. Volume em que eu mesma, por generosidade dos organizadores, assino um deslocado capítulo sobre Céline.
  28. Ela responde por Viagem ao fim da noite (1995), Vida e obra de Semmelweis (1998) e De um castelo para o outro (2005), todos pela Companhia das Letras. Enquanto a tradução de Morte a crédito foi realizada por Vera de Azambuja Harvey e Maria Arminda Souza Aguiar para a Nova Fronteira (1982).
  29. “Ce style est fait d’une certaine façon de forcer les phrases à sortir légèrement de leur signification habituelle, de les sortir des gonds, pour ainsi dire”, declara Céline. “Louis-Ferdinand Céline vous parle”, Romans II, op. cit., p.933.
  30. Rosa Freire D’Aguiar, “Apresentação” em Céline, Viagem ao fim da noite. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 6.
  31. Céline, “Louis-Ferdinand Céline vous parle”, Romans II, idem, ibidem.
  32. Charles Baudelaire, De l’essence du rire. Et généralement du comique dans les arts plastiques. Texto em prosa inserido na seção Curiosités Esthétiques da edição Gallimard-Pléiade das Oeuvres Completes. Paris: Gallimard, 1951.
  33. Céline, Nord, Romans II, op. cit., p. 348.
  34. Marcel Proust, Le temps retrouvé / À la recherche du temps perdu, Vl. III, op. cit., p. 924.

Morte à Crédito; Trecho:

"...Você nunca tentou saber como um cérebro está organizado?... O aparelho que o faz pensar? Hem? Mas claro que não! Não lhe interessa nem um pouco!... Precisa convencer-se, sinceramente, de que a desordem é a essência da nossa própria vida! de todo o ser físico e metafísico! É a sua alma... milhões, trilhões de circunvoluções... intrincadas, em profundidade, cinzentas, recortadas, mergulhantes, subjacentes, evasivas... Ilimitadas! Esta é a Harmonia! Toda a natureza! Uma fuga do imponderável e não passa disso... Ponho ordem em meus pensamentos; não substituo essa tarefa por outras, materialistas, negativas, obscenas... É preciso procurar o essencial! Você vai, por causa disso, cair em cima do seu cérebro, corrigi-lo, descascá-lo, mutilá-lo, forçá-lo a obedecer a regras obtusas? À faca geométrica? Refaze-lo, crucificá-lo às limitações da burrice?... Armá-lo em camadas como um bolo de aniversário? Com uma pedra dentro! Hem? Responda. Com toda a sua franqueza. Que tal? Seria bom? interessante! Iria coroar tudo!... É a grande desordem que importa! Os pensamentos prósperos! Tudo tem seu preço... Depois que passa a oportunidade, acabou-se!... Você vai ficar, infelizmente, firme na sua lixeira da razão para sempre! O míope, o cego, o absurdo, o surdo, o maneta o palerma! É você que vem perturbar a minha desordem com esses seus pensamentos depravados... A Harmonia é a única alegria do mundo, a única liberdade, a única verdade. Em ordem! Merda! Em ordem! Habitue-se à Harmonia e a Harmonia descerá até você! E você achará tudo o que procura há muito tempo nos caminhos do Mundo... E muito mais! Uma emboscada inútil de armários! Uma barricada de folhetos! Uma vasta empreitada humilhante! Uma necrópole de mapas! Não sente a vida pululando, fremindo!? Ponha a mão só um pouquinho, um dedinho que seja... Tudo de agita! Vibra no mesmo instante! Está tudo prestes a se lançar, florescer, resplandecer... Não me acho com direito de dizer-te o que é... Muito menos de reduzir, corrigir, corromper, cortar, separar... Hem!?... Aonde é que eu ia achar esse direito? No infinito, na vida das coisas? Não, não é natural, sã manobras infames!... Eu continuo em paz com o universo, deixo-o assim como encontro... Não o retificarei nunca!"