Segunda parte da entrevista com Louis-Ferdinand Céline publicada na revista americana Paris Review (1960).
ENTREVISTADOR
O senhor se lembra de ter tido um choque, uma explosão literária que o marcou?
CÉLINE
Nunca! Comecei na medicina, queria a medicina e
certamente, não a literatura. Jesus Cristo, não! Se existem algumas
pessoas que me parecem talentosas, eu acho que são – sempre os mesmos –
Paul Morand, Ramuz, Barbusse, os sujeitos que foram feitos para isso.
ENTREVISTADOR
Na sua infância, o senhor não pensava em ser escritor?
CÉLINE
Não, não, não, definitivamente não. Eu tinha uma
admiração enorme por médicos. Aquilo era realmente extraordinário, era
mesmo. Medicina era minha paixão.
ENTREVISTADOR
Na sua infância, o que um médico representava?
CÉLINE
Apenas um tipo que vinha para a passage Choiseul
para atender minha mãe doente, meu pai. Eu via um sujeito miraculoso,
isso mesmo, que curava, que fazia coisas surpreendentes com um corpo que
não queria mais funcionar. Eu achava aquilo magnífico. Ele parecia ser
muito sábio. Eu achava aquilo absolutamente mágico.
ENTREVISTADOR
E hoje, o que um médico representa para o senhor?
CÉLINE
Bah! Agora ele está tão maltratado pela sociedade que tem que
competir com todo mundo, não tem mais prestígio, nenhum prestígio. Desde
que passou a se vestir como um frentista de posto de gasolina, bem,
pouco a pouco, foi se tornando um frentista de gasolina. Não tem muito
mais o que dizer, a dona de casa tem o Larousse Médica, e aí
até mesmo as doenças perderam o prestígio, muito poucas ainda têm algum,
então, olhe o que acontece: nem sífilis, nem gonorreia, nem tifo. Os
antibióticos tiraram bastante a tragédia da medicina. Então não existe
mais peste, não existe mais cólera.
ENTERVISTADOR
E as doenças mentais e nervosas, não aumentaram por sua vez?
CÉLINE
Bem, nesse caso não temos muito que fazer. Algumas
loucuras matam, mas não muitas. Porém, quanto aos meios loucos, Paris
está cheia deles. Há uma necessidade natural de buscar excitação, mas
obviamente todas as bundas que você vê pela cidade inflamam a atração
sexual a um ponto que… leva os adolescentes à loucura, não leva?
ENTREVISTADOR
Quando o senhor estava trabalhando na Ford, teve a
impressão de que o modo de vida imposto às pessoas que trabalhavam lá
poderia agravar os distúrbios mentais?
CÉLINE
Não necessariamente. Tive um médico-chefe na Ford que
costuma dizer: “Eles dizem que os chimpanzés catam algodão. Acho que
seria preferível ver alguns trabalhando nas máquinas”. Os doentes são
preferíveis, muito mais apegados à fábrica do que os saudáveis, os
saudáveis estão sempre se demitindo, enquanto os doentes permanecem
muito bem no trabalho. Mas o problema humano agora não é a medicina.
São, principalmente, as mulheres que consultam os médicos. A mulher é
cheia de problemas, porque claramente é ela que tem todo tipo de
fraqueza conhecida. Ela precisa… Ela quer permanecer jovem. Ela tem sua
menopausa, sua menstruação, todo cuidado genital, que é muito delicado,
isso faz dela um mártir, não é mesmo? Então esse mártir vive de qualquer
maneira, sangra, não sangra, vai ao médico, passa por operações, não
passa por operações, é operada de novo, e nesse meio tempo dá à luz,
perde a forma, e tudo isso é importante. Ela quer permanecer jovem,
manter bem a sua forma. Não quer fazer nada e não consegue fazer nada.
Não tem músculos. Isso é um grande problema… raramente reconhecido. Isso
mantém os salões de beleza, os médicos charlatões, os farmacêuticos.
Mas isso não apresenta nenhuma situação médica interessante, o declínio
da mulher. É obviamente uma rosa murchando, você não pode dizer que é um
problema médico, ou um problema agrícola. Num jardim, quando você vê
uma rosa murchar, você aceita. Outra vai desabrochar. Quanto à mulher,
ela não quer morrer. Esta é a parte difícil.
ENTREVISTADOR
Sua profissão como médico lhe trouxe um certo número de revelações e experiências que transmitiu em seus livros.
CÉLINE
Ah, sim! Claro! Passei trinta e cinco anos clinicando,
então isso conta um pouco. Andei muito por aí na minha juventude.
Subimos muitas escadas, vimos muitas pessoas. Devo dizer que isso me
ajudou bastante em todos os sentidos. Sim, bastante. Mas não escrevi
nenhum romance médico, isso é abominavelmente chato… Como Soubiran.
ENTREVISTADOR
A sua vocação médica se revelou muito cedo. Apesar disso, o senhor começou de modo inteiramente diferente.
CÉLINE
Ah, sim! E como! Queriam fazer de mim um comprador. Um
vendedor de loja de departamentos. Nós não tínhamos nada. Meus pais não
tinham recursos, você entende? Comecei na pobreza, e assim estou
terminando.
ENTREVISTADOR
E como era a vida para os pequenos comerciantes por volta de 1900?
CÉLINE
Dura, muito dura. No sentido de que mal tínhamos o
suficiente para comer, e você tinha que manter as aparências. Por
exemplo, nós tínhamos duas frentes de lojas na passage Choiseul,
mas sempre ficava somente uma acesa porque a outra estava vazia. E você
tinha que lavar a calçada antes de ir trabalhar. Meu pai não era
brincadeira. Bem. Minha mãe tinha brincos. Nós sempre o levávamos para
casa de penhora no fim do mês, para pagarmos a conta de gás. Ah, não,
isso era horrível.
ENTREVISTADOR
O senhor viveu por muito tempo na passage Choiseul?
CÉLINE
Bem, dezoito anos. Até eu me alistar. Era uma pobreza
extrema. Mais difícil que a pobreza, porque na pobreza você vai levando,
degenerando, se embebedando, mas aquela era uma pobreza que o mantinha
para cima, pobreza dignificada. Era terrível. A vida inteira eu comia
macarrão. Porque minha mãe costumava consertar rendados velhos. E uma
coisa sobre renda antiga é que os odores ficam pra sempre nela. E você
não podia entregar os rendados malcheirosos! Então, o que não dava
cheiro? A cozinha na passage Choiseul ficava no segundo andar,
do tamanho de um guarda-louças. Você chegava ao segundo andar através de
uma escadaria em espiral, e assim, você tinha que ficar subindo e
descendo interminavelmente para ver se a comida estava cozida, se estava
fervendo, se não estava fervendo, era insuportável. E meu pai era um
escriturário. Ele chegava em casa às cinco. Ele tinha que fazer as
entregas para ela. Aquilo sim era pobreza, pobreza dignificada.
ENTREVISTADOR
O senhor também sentia o desconforto da pobreza quando ia pra escola?
CÉLINE
Não éramos ricos na escola. Era uma escola estadual, você
sabe, não havia complexos. Nem muitos complexos de inferioridade,
também. Todos éramos iguais, criancinhas pulguentas. Não, não havia
ninguém rico naquele lugar. Conhecíamos quem era rico. Eram uns dois ou
três. Nós os venerávamos! Meus pais costumavam me dizer, aquelas pessoas
eram ricas, os comerciantes locais de tecido. Senhor Prudhomme. Eles
entraram lá por engano, mas nós os reconhecemos, com admiração. Naquela
época venerávamos quem era rico! Pela sua riqueza! E ao mesmo tempo
pensávamos que os ricos eram inteligentes.
ENTREVISTADOR
Quando e como o senhor se deu conta da injustiça que isso representava?
CÉLINE
Devo confessar que muito tempo depois. Depois da guerra.
Veja, isso aconteceu quando comecei a ver as pessoas fazendo dinheiro
enquanto outras estavam morrendo nas trincheiras. Via isso e não podia
fazer nada. Tempos depois, estava na Liga das Nações, e lá vi a luz. Vi
que o mundo era realmente regido pelo Bezerro de Ouro, pelo Dinheiro!
Sem brincadeira! Implacavelmente. A consciência social com certeza
chegou tarde para mim. Não tinha isso, era resignado.
ENTREVISTADOR
A atitude de seus pais era de aceitação?
CÉLINE
Era uma aceitação frenética! Minha mãe sempre me dizia: “Pobre
menino, se não houvesse as pessoas ricas (porque eu já tinha uma pequena
ideia de como isso acontecia), se não existissem as pessoas ricas, não
teríamos o que comer. Os ricos têm responsabilidades”. Minha mãe adorava
os ricos, sabe? Então, o que você espera, isso me afetou também. Não
fiquei muito convencido. Não. Mas eu não ousava dar uma opinião, não,
não. Minha mãe, que estava com os rendados até o pescoço, jamais sonhou
em poder usar um daqueles. Pois eles eram feitos para os clientes.
Nunca. Não era para nós. Assim como o joalheiro. Ele não usava joia. A
esposa do joalheiro nunca usou joias. Fui um dos seus mensageiros. No
Robert, na rua Royale; no Lacloche, rua de la Paix. Eu era muito ativo
naqueles dias. U-lá-lá! Eu fazia tudo muito rápido. Estou fora de forma
agora, mas naquela época podia até competir com o metrô. Sempre
machucávamos os pés. Meus pés sempre ficavam feridos. Pois, você sabe,
não trocávamos os sapatos com tanta frequência. Nossos sapatos ficavam
muito pequenos e nós crescíamos cada vez mais. Eu fazia todo meu
percurso a pé. Sim… Consciência social… quando eu estava na Cavalaria,
ia às caçadas do príncipe Orloff e da duquesa de Uzès, e costumávamos
usar os cavalos dos oficiais. Isso era o mais longe que se podia chegar.
Éramos totalmente como gado. Sim. Ficou claro que isso fazia parte do
jogo.
ENTREVISTADOR
O senhor foi muito influenciado por sua mãe?
CÉLINE
Tenho o caráter dela. Muito mais do qualquer outra coisa.
Ela era difícil, impossível, aquela mulher! Devo dizer que ela tinha um
temperamento complicado. Enfim, ela não aproveitava a vida. Sempre
preocupada e sempre exausta. Trabalhou até os últimos minutos da sua
vida.
ENTREVISTADOR
Como ela o chamava? Ferdinand?
CÉLINE
Não, Louis. Ela queria me ver numa grande loja, no Hôtel
de Ville, no Louvre. Como um encarregado de compras. Este era o ideal
para ela. Meu pai também pensava assim. Porque ele teve pouco sucesso
com seu diploma de Letras! E meu avô tinha doutorado! Eles tiveram tão
pouco sucesso, eles diziam: “Negócios, ele terá sucesso nos negócios”.
ENTREVISTADOR
Seu pai não poderia ter alcançado uma situação melhor se aderisse ao magistério?
CÉLINE
Sim, pobre homem, mas olhe o que aconteceu: ele precisava
de um diploma para ensinar, e ele só tinha o diploma de formação geral,
e não pôde ir mais adiante porque não tinha dinheiro. Seu pai havia
morrido deixando esposa e cinco filhos.
ENTREVISTADOR
E seu pai morreu idoso?
CÉLINE
Ele morreu quando Viagem foi publicado, em 1932.
ENTREVISTADOR
Antes de o livro sair?
CÉLINE
Pouco antes. Ele não ia gostar. E, tem mais, era
ciumento. Não me via como escritor. Nem eu mesmo. Pelo menos caso,
tínhamos chegado a um acordo.
ENTREVISTADOR
E como sua mãe reagiu aos seus livros?
CÉLINE
Ela os considerava perigosos e obscenos, e achava que
trariam problemas. Via que isso ia terminar muito mal. Ela tinha uma
natureza prudente.
ENTREVISTADOR
Ela leu seus livros?
CÉLINE
Ah, ela não conseguia, isso não
estava ao seu alcance. Ela pensava que tudo isso era vulgar, então não
lia livros, não era do tipo de mulher que lia. Não era nem um pouco
vaidosa. Trabalhou até a morte. Eu estava na prisão. E soube que ela
havia morrido. Não, eu estava chegando em Copenhague quando soube da sua
morte. Uma viagem terrível, muito ruim, sim – a orquestração perfeita.
Abominável. Mas aas coisas só são abomináveis por um lado, não se
esqueça. E, você sabe… a experiência é uma lâmpada fraca que só ilumina
aquele que a carrega… e incomunicável… Tenho que guardá-la para mim
mesmo. Para mim, você só deveria ter o direito de morrer se tivesse uma
boa história para contar. Para entrar, você conta uma história e passa
adiante. É sobre isso que Morte a crédito fala. Simbolicamente,
o prêmio da vida sendo a morte. Tendo em vista que… não é o bom Deus
quem dita as regras, e, sim, o diabo. O homem. A natureza é nojenta; dê
só uma olhada, a vida dos pássaros, a vida animal.
ENTREVISTADOR
Quando em sua vida o senhor foi feliz?
CÉLINE
Muito feliz, nunca, eu acho. Porque o que você precisa,
envelhecendo… Acho que se me dessem um monte de dinheiro para gastar –
eu adoraria isso – eu me daria a chance de me aposentar e sumir, então
não teria que trabalhar e poderia ficar observando os outros. A
felicidade seria ficar sozinho, no litoral, e ser deixado em paz. E
comer muito pouco; sim. Quase nada. Uma vela. Eu viveria sem
eletricidade e sem outras coisas. Uma vela! Uma vela, e assim eu leria
jornais. Vejo as outras pessoas agitadas, sobretudo excitadas por
ambição; a vida delas é um show, os ricos vivem trocando convites para
que a performance continue. Já vi isso, já vivi entre as pessoas da
sociedade – “Escute, Gontran, ouça o que ele disse para você; Oh,
Gaston, você realmente estava em forma ontem, hein! Mostrou a ele como é
que era, hein! Ele me falou sobre isso ontem à noite, de novo! Sua
esposa estava dizendo: Oh, Gaston nos surpreendeu!”. É uma comédia.
Eles gastam o tempo deles com esse tipo de coisa. Cada um caçando o
outro, encontrando-se nos mesmos clubes de golfe, nos mesmos
restaurantes.
ENTREVISTADOR
Se o senhor tivesse uma outra oportunidade, buscaria a felicidade fora da literatura?
CÉLINE
Mas é claro! Não peço alegria. Não sinto alegria.
Aproveitar a vida é uma questão de temperamento, de dieta. Você tem que
comer bem, beber bem, daí os dias passam rápido, não é mesmo? Comer e
beber bem, dar uma volta de carro, ler alguns jornais, e, logo, lá se
foi um dia. Seu jornal, alguns convidados, café da manhã, meu Deus, já é
hora do almoço quando você sai para passear. Ver alguns amigos à tarde,
e lá se vai o dia. À noite, cama, como de costume, e olhos fechados. E
lá está você. E quanto mais idade, mais as coisas vão rápidas não é? Um
dia é interminável quando você é jovem, por outro lado, quando você
envelhece tudo fica muito breve. Quando você se aposenta, um dia é um
flash; quando você é menino, é muito vagaroso.
ENTREVISTADOR
Como o senhor preencheria seu tempo se estivesse aposentado e com renda?
CÉLINE
Eu leria os jornais. Daria uma pequena caminhada onde ninguém pudesse me ver.
ENTREVISTADOR
O senhor pode caminhar por aqui?
CÉLINE
Não, nunca! É melhor não!
ENTREVISTADOR
Por que não?
CÉLINE
Eu seria notado. E não quero isso. Não quero ser visto.
Num porto você desaparece. No Havre… Creio que ninguém notaria um
sujeito nas docas do Havre. Você não vê nada, um velho marinheiro, um
velho tolo…
ENTREVISTADOR
E o senhor gosta de barcos?
CÉLINE
Sim, sim. Adoro ficar observando-os. Vê-los indo e vindo.
Isto e o quebra-mar, e eu fico feliz. Eles soltam fumaça, vão embora, e
não têm nada ver com você, hein? Ninguém lhe pergunta nada! Sim, e você
lê o jornal local, Le Petit Havrais, e… e é isso. Já é tudo. Eu viveria minha vida bem diferente.
ENTREVISTADOR
Existem algumas pessoas que serviram de exemplo pra o senhor? Pessoas que gostaria de ter imitado?
CÉLINE
Não, porque isso tudo é magnífico, tudo isso, e não quero
ser magnífico, não sinto desejo por tudo isso, só quero ser um velho
homem ignorado. Essas são as pessoas que vivem nas enciclopédias, não
quero isso.
ENTREVISTADOR
Quis dizer as pessoas que o senhor pôde encontrar na vida diária.
CÉLINE
Não, não, não. Sempre os vejo prejudicando outras
pessoas. Eles me dão nos nervos. Não. Tenho certo tipo de modéstia da
minha mãe, uma insignificância absoluta, realmente absoluta! O que me
interessa é ser ignorado. Tenho um apetite, um apetite animal pela vida
reclusa. Sim gosto muito de Boulogne, sim, Boulogne-sur-mer. Eu
frequentemente ia à Saint-Malo, mas isso não é mais possível. Sou mais
ou menos conhecido lá. Lugares aonde as pessoas nunca vão…