sábado, 14 de maio de 2011

Entrevista de Louis Ferdinand Céline - 1° de Junho de 1960






Entrevista conduzida por J. Darribehaude, J. Quenot, André Parinaud e Claude Sarraute, publicada na Paris Review, inverno-verão de 1964 e republicada no livro; Os escritores: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Cia. das Letras, 1988, de onde foi extraída.


Apresentação: 


Louis-Ferdinand Destouches (Céline é um pseudônimo) nasceu a 27 de maio de 1894, em Paris, filho de um funcionário pobre e uma rendeira. Depois de receber uma educação primária, Destouches trabalhou em várias ocupações até 1912, quando ingressou na cavalaria. Logo no início da Primeira Guerra Mundial, foi ferido na cabeça e adquiriu neurose de guerra numa ação pela qual foi condecorado por bravura. O sofrimento, físico e mental, provocado por esses ferimentos perseguiu-o até o fim de sua vida.
Após ser dispensado por invalidez, obteve um diploma médico; tornou-se então cirurgião assistente na fábrica Ford em Detroit. A seguir foi para a África, e aí, após um período na Liga das Nações, decidiu-se pelo trabalho médico extremamente mal remunerado entre os pobres de Paris.
O primeiro romance de Céline foi Voyage au bout de la nuit (1932), que logo se tornou um sucesso internacional. Seu segundo romance, Mort à crédit (1936), consolidou sua reputação. Seu uso da linguagem coloquial, suas visões da vida nos estratos mais baixos da sociedade, seu sarcasmo - aliados à compaixão - influenciaram Sartre, Queneau e Bernanos e, entre os norte-americanos, Henry Miller, Burroughs, Ginsberg e Kerouac.
No fim dos anos 30, Céline começou a tender politicamente para o fascismo e proclamou seu anti-semitismo. Durante a ocupação alemã, seu comportamento foi ambíguo. Depois da libertação, teve que fugir para a Dinamarca, com a identidade disfarçada sob seu verdadeiro nome. Foi julgado in absentia, mas o veredicto foi posteriormente anulado e lhe permitiram retomar à França, onde passou seus últimos anos - parcialmente paralisado e à beira da loucura. Céline, entretanto, continuou a escrever, produzindo dois romances - D'un château à l'autre (1957) e Nord (1960) - considerados por alguns críticos como equivalentes aos seus dois grandes livros dos anos 30. Morreu em Paris, a 1.° de julho de 1961.

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                             (Entrevista, 1º de junho de 1960)


L.F. Céline: O que posso lhe dizer? Não sei como agradar aos seus leitores. Essa gente com quem você tem que ser gentil... Não pode massacrá-los. Eles gostam de ser entretidos sem ser maltratados. Bem... Vamos conversar. Um autor não tem tantos livros dentro de si. Voyage au bout de ia nuit... já deveria ter sido o suficiente ... Entrei nisso por curiosidade. Curiosidade, isso custa. Tornei-me um cronista trágico. A maioria dos escritores está procurando a tragédia sem encontrá-la. Relembram pequenas histórias pessoais que não são tragédia. Você dirá: os gregos. Os trágicos gregos tinham a impressão de falar com os deuses ... Bem, é claro ... Cristo, não é todo dia que se tem a chance de telefonar para os deuses.


- E o trágico nos nossos tempos, para você?


L.F. Céline: É Stalingrado. Que tal isso para a catarse! A queda de Stalingrado é o fim da Europa. Lá houve uma catástrofe. O centro disso tudo era Stalingrado. Lá você pode dizer que acabou, e bem acabada, a civilização branca. Então aquilo tudo, aquilo fez algum barulho, alguma ebulição, as armas, as cataratas. Eu estive ali... Aproveitei isso. Usei esse material. Vendi-o. Evidentemente, meti-me em questões - a questão judaica - que não eram da minha conta, não era da minha conta estar ali. Mesmo assim eu as descrevi ... do meu jeito.


- Um jeito que provocou um escândalo com a publicação de Voyage. O seu estilo sacudiu um bocado de hábitos.


L.F. Céline: Eles chamam isso de invenção. Olhe os impressionistas. Um belo dia pegaram seus quadros e foram pintar do lado de fora. Viram como é que realmente se almoça na grama. Os músicos também trabalharam nisso. De Bach a Debussy há uma grande diferença. Provocaram algumas revoluções. Despertaram as cores, os sons. Para mim são as palavras, as posições das palavras. No que concerne à literatura francesa, aí eu serei o sabichão, não se engane. Somos pupilos das religiões - católica, protestante, judaica ... Bem, das religiões cristãs. Aqueles que dirigiram a educação francesa por séculos foram os jesuítas. Eles nos ensinaram a compor sentenças traduzidas do latim, bem balanceadas, com um verbo, um sujeito, um complemento, um ritmo. Em suma: aqui uma frase, ali uma oração, em todo lugar um sermão! Dizem de um escritor: "Ele tece frases tão belas!". E eu digo: "É ilegível". Dizem: "Que estupenda linguagem teatral!". Eu olho, eu ouço. É rasa, é nula, é nada. Eu enfiei a palavra falada na escrita. De uma só vez.


- É isso o que você chama de sua "pequena música", não?


L.F. Céline: Chamo de "pequena música" porque sou modesto, mas é uma transformação muito difícil de realizar. É trabalho. Do jeito que é não parece ser nada, mas tem qualidade. Para fazer um romance como um dos meus você tem que escrever oitenta mil páginas para conseguir oitocentas. Algumas pessoas dizem, quando falam de mim: "Há eloqüência natural... Ele escreve como fala... Aquelas são palavras do dia-a-dia... São praticamente idênticas... Pode-se reconhecê-las". Bem, aí, isso é "transformação". Simplesmente não é a palavra que você está esperando nem a situação que você está esperando. Uma palavra utilizada desse jeito se torna ao mesmo tempo mais íntima e mais exata do que o que você normalmente encontra nesse lugar. Você inventa o seu estilo. Ajuda a pôr para fora o que está querendo mostrar de você mesmo.


- O que você está querendo mostrar?

L.F. Céline: Emoção. Savy, o biólogo, disse algo apropriado: No princípio havia emoção, e o verbo não estava lá de jeito algum. Quando você cutuca uma ameba, ela se retrai, tem emoção, não fala mas tem emoção. Um bebê chora, um cavalo galopa. Só que, a nós, deram-nos o verbo. E isso lhe dá o político, o escritor, o profeta. O verbo é horrível. Não se pode cheirá-lo. Mas chegar ao ponto em que se pode traduzir essa emoção, essa é uma dificuldade que ninguém imagina... É feio... É sobre-humano... É um truque que pode matar um cara.


- No entanto, você sempre aprovou a necessidade de escrever.


L.F. Céline: Não se faz nada de graça. Você tem que pagar. Uma história que você inventa, isso não vale nada. A única história que conta é aquela pela qual você paga. Depois de pagá-la, tem o direito de transformá-la. De outro modo não presta. Eu trabalho... Tenho um contrato, ele tem que ser cumprido. Só que hoje tenho sessenta e cinco anos, estou setenta e cinco por cento mutilado... Na minha idade a maioria dos homens já se aposentou. Devo seis milhões a Gallimard... por isso sou obrigado a continuar... Já tenho outro romance em curso: sempre o mesmo negócio... Uma ninharia. Conheço uns poucos romances. Mas os romances são um pouco como renda... uma arte que desapareceu com os conventos. Os romances não podem competir com os carros, o cinema, a televisão, a bebida, Um cara que está bem alimentado, que escapou da grande guerra, de noite dá um picote na velha e o seu dia acabou. Findo.


                           (Entrevista, mais tarde em 1960)


- Você se lembra de ter tido um choque, uma explosão literária que o tivesse marcado?

L.F. Céline: Ah, não, nunca! Comecei na medicina e queria medicina, certamente; não literatura. Cristo, não! Se há algumas pessoas que me parecem dotadas, são - sempre os mesmos - Paul Morand, Ramuz, Barbuse, os caras foram feitos para isso.

- Na sua infância nunca pensou que chegaria a ser escritor?


L.F. Céline: Ah, não, de jeito nenhum, não, não, não. Eu tinha uma imensa admiração pelos médicos. Ah, isso parecia extraordinário, isso sim. A medicina era a minha paixão.


- Na sua infância, o que um médico representava?


L.F. Céline: Apenas um camarada que vinha à passage Choiseul para ver minha mãe doente, meu pai. Vi um cara milagroso, vi sim, que curava, que fazia coisas surpreendentes para um corpo que não estava funcionando bem. Achei isso tremendo. Ele parecia muito sábio. Achei absolutamente mágico.


- E, hoje em dia, o que um médico representa para você?


L.F. Céline: Bah! Agora ele é tão maltratado pela sociedade que sofre competição de todo mundo, não tem mais prestígio, mais nenhum prestígio. Já que anda vestido como um empregado de posto de gasolina, bem, pouco a pouco, vai se tornando um empregado de posto de gasolina. Não é? Já não tem muito a dizer, a dona-de-casa tem a Enciclopédia médica Larousse, e mesmo as doenças perderam o seu prestígio, há menos delas; então veja o que aconteceu: nem sífilis, nem gonorréia, nem tifo. Os antibióticos tiraram muito da tragédia da medicina. Então não há mais peste, não há mais cólera.


- E as doenças nervosas e mentais, o número delas não aumentou, por sua vez?


L.F. Céline: Bem, aí não podemos fazer nada. Algumas loucuras matam, mas não muitas. Quanto aos meio loucos, Paris está cheia deles. Há uma necessidade natural de se procurar excitamento, mas sem dúvida todas as bundas que se vêem pela cidade inflamam o desejo sexual até um grau... deixam os adolescentes malucos, não é?


- Quando estava trabalhando na Ford, teve a impressão de que o modo de vida imposto às pessoas que lá trabalhavam corria o risco de agravar distúrbios mentais?


L.F. Céline: Ah, de jeito nenhum. Não. Eu tinha um médico chefe na Ford que costumava dizer: "Dizem que até chimpanzés colhem algodão. Digo que seria melhor ver alguns deles trabalhando nas máquinas". Os doentes são preferíveis, são muito mais apegados à fábrica do que os saudáveis; os saudáveis estão sempre caindo fora, enquanto os doentes permanecem no emprego muito bem. Mas o problema humano, agora, não é a medicina. São quase só as mulheres que consultam os médicos. A mulher é cheia de problemas, pois tem nitidamente toda espécie de fraqueza que se conhece. Ela precisa... ela quer permanecer jovem. Tem a sua menopausa, as suas regras, toda a questão genital, que é muito delicada, faz dela um mártir, não, daí esse mártir vive de qualquer modo, sangra, não sangra, vai e vê o médico, faz operações, não faz operações, é re-operada; aí, no meio disso, ela dá à luz, perde a sua forma, tudo isso conta. Quer permanecer jovem, manter a linha, bem. Não quer fazer nada e não pode fazer nada. Não tem nenhum músculo. É um problema imenso... dificilmente reconhecido. E sustenta os salões de beleza, os charlatões e os farmacêuticos. Mas não representa uma situação médica interessante, o declínio da mulher. É sem dúvida uma rosa murchando, não se pode dizer que seja um problema médico ou um problema agrícola. Num jardim, quando você vê uma rosa murchar, aceita. Outra vai florescer. Ao passo que a mulher, não; ela não quer morrer. Essa é a parte difícil.


- A sua profissão de médico trouxe-lhe um certo número de experiências e revelações que você transmitiu nos seus livros.


L.F. Céline: Ah, sim, sim, passei trinta e cinco anos clinicando, então isso conta um pouco. Andei um bocado na minha juventude. Subimos um bocado de escadas, vimos um bocado de pessoas. Ajudou-me um bocado de todas as maneiras, devo dizer. Sim, imensamente. Mas não escrevi nenhum romance médico, essa chateação abominável... come Soubiran.


- A sua vocação médica manifestou-se bem cedo em sua vida e, no entanto, você começou de modo inteiramente diferente.


L.F. Céline: Ah, sim. E como! Queriam fazer de mim um agente de compras. Um vendedor de grande magazine! Nós não tínhamos nada, meus pais não tinham meios, entende? Comecei na pobreza e é assim que estou terminando.

- Como era a vida para o pequeno comércio em 1900?

Terrível, terrível. No sentido de que mal tínhamos o suficiente para comer e tínhamos que manter as aparências. Por exemplo, tínhamos duas frentes de loja na passage Choiseul, mas apenas uma ficava sempre acesa, pois a outra estava vazia. E tínhamos que lavar a calçada antes de ir trabalhar. Meu pai não era brincadeira. Bem, minha mãe tinha um par de brincos. Nós sempre o levávamos à loja de penhores no fim do mês para pagar a conta de gás. Ah, não, era horrível.


- O senhor viveu bastante tempo na passage Choiseul?


L.F. Céline: Bem, dezoito anos. Até que me alistei. Era pobreza extrema. Pior de que pobreza, porque na pobreza você pode se abandonar, se arruinar. se embriagar, mas essa era uma pobreza que mantém as aparências, pobreza digna. Era terrível. Toda a minha vida comi macarrão. Porque minha mãe costumava consertar renda antiga. E o que acontece com essa renda é que os cheiros grudam nela para sempre. E você não pode entregar renda que fede! Então o que é que não fedia? Macarrão. Comi bacias de macarrão. Minha mãe fazia macarrão em bacias. Macarrão cozido, ah, sim, sim. toda a minha juventude, macarrão e mingau. Coisas que não fediam. A cozinha na passage Choiseul era no segundo andar, do tamanho de um armário, você chegava ao segundo andar por uma escada em caracol, assim, e tinha que subir e descer infinitamente para ver se estava cozinhando, se estava fervendo, se não estatava fervendo, insuportável. Minha mãe era aleijada, uma das suas pernas não funcionava, e ela tinha que subir aquela escada. Costumávamos subi-la umas vinte e cinco vezes por dia. Que vida! Uma vida insuportável! E meu pai era um funcionário. Ele voltava para casa às cinco. Tinha que fazer as entregas para ela. Ah, não, aquilo era pobreza, pobreza digna.


- O senhor também sentiu a agrura de ser pobre quando entrou para a escola?
 

L.F. Céline: Não éramos ricos, na escola. Era uma escola do Estado, você sabe, então não havia nenhum complexo. Nem muitos complexos de inferioridade, também. Eram todos como eu, garotinhos cheios de pulgas. Não, não havia gente rica naquele lugar. Nós conhecíamos os ricos. Eram dois ou três. Nós os venerávamos! Meus pais costumavam me dizer: aquelas pessoas são ricas, o comerciante de linho local. Pru'homme. Tinham caído lá por engano, mas nós os reconhecíamos, com horror. Naqueles dias nós venerávamos o homem rico! Pela sua riqueza! E ao mesmo tempo pensávamos que era inteligente.


- Quando e como o senhor se deu conta da injustiça que isso representava?


L.F. Céline: Bem tarde, devo admitir. Depois da guerra. Aconteceu, percebe´, quando vi gente ganhando dinheiro enquanto os outros estavam morrendo nas trincheiras. Você via isso e não podia fazer nada. Aí, mais tarde, eu estava na Liga das Nações, e lá vi a luz. Vi realmente que o mundo era governado pelo Bezerro, pelo Dinheiro! Ah, sem brincadeira! Implacavelmente. A consciência social certamente veio tarde para mim. Eu não a possuía, eu era resignado.


- A atitude de seus pais era de aceitação?


L.F. Céline: Era de frenética aceitação! Minha mãe sempre costumava me dizer; "Pobre menino, se não tivesse as pessoas ricas (porque eu já tinha umas pequenas idéias a esse respeito), se não houvesse pessoas ricas nós não teríamos nada para comer. Os ricos têm responsabilidades". Minha mãe venerava gente rica, percebe. Então, o que é que se pode esperar, isso me contagiou também. Eu não estava inteiramente convencido. Não, Mas não ousava ter uma opinião, não, não. Minha mãe, que vivia mergulhada nas rendas até o pescoço, jamais sonharia em usar alguma. Isso era para os fregueses. Nunca. Não era feito para nós, entende. Nem mesmo o joalheiro, ele não usava jóias, a mulher do joalheiro nunca usou jóias. Eu era um dos seus garotos de recado. No Robert, na rue Royale; no Lacloche, na Rue de la Paix. Eu era muito ativo naqueles dias. O, la la! Fazia tudo muito depressa. Agora estou cheio de gotas, mas naqueles dias costumava ser mais rápido que o metrô. Nossos pés sempre doíam. Meus pés sempre doeram. Porque nós não mudávamos de sapato com muita freqüência, você sabe. Nossos sapatos eram muito pequenos, e nós estávamos crescendo. Eu fazia todas as minhas tarefas a pé. Sim... Consciência social. .. Quando eu estava na cavalaria, ia às festas de caça do príncipe Orloff e da duquesa de Uzès, e nós costumávamos segurar os cavalos dos oficiais. Isso era o mais longe a que se chegava. Puro gado, nós éramos. Claramente compreendido, é lógico, esse era o pacto.

- Sua mãe teve muita influência sobre o senhor?


L.F. Céline: Tenho o caráter dela. Muito mais do que qualquer outra coisa. Ela era muito severa, era impossível, aquela mulher. Devo dizer que possuía um certo temperamento. Não desfrutava a vida, é tudo. Sempre preocupada e sempre atordoada. Trabalhou até o último minuto de sua vida.


- Como ela o chamava? Ferdinand?


L.F. Céline: Não. Louis. Ela queria me ver num grande magazine, no Hôtel de Ville, no Louvre. Um encarregado de compras. Isso era o ideal para ela. E meu pai pensava o mesmo. Porque ele tinha tido tão pouco sucesso com o seu diploma de literatura! E meu avô tinha feito doutorado! Eles tinham tido muito pouco sucesso, costumavam dizer; comércio, ele vai se dar bem no comércio.


- Seu pai não poderia ter tido uma posição melhor lecionando?


L.F. Céline: Sim, pobre homem, mas veja o que aconteceu: ele precisava de um diploma de licenciatura e tinha apenas um diploma de formação geral, e . não podia continuar porque não tinha dinheiro algum. Seu pai tinha morrido e deixado esposa e cinco filhos.


- E seu pai morreu tarde na vida?


L.F. Céline: Morreu quando Voyage foi publicado, em 32.


- Antes que o livro saísse?


L.F. Céline: Sim, pouco antes. Ah, ele não teria gostado. Além disso, era ciumento. Não me via como um escritor de modo algum. Nem eu mesmo, afinal de contas. Concordávamos pelo menos num ponto.


- E como sua mãe reagiu aos seus livros?


L.F. Céline: Achava que eram perigosos, obscenos e que trariam problemas. Viu que aquilo ia terminar muito mal. Tinha uma natureza prudente.


- Ela leu os seus livros?


L.F. Céline: Ah, ela não podia, não estava ao seu alcance. Teria achado tudo muito vulgar, e também não lia livros, não era o tipo de mulher que lê. Não tinha vaidade alguma. Continuou trabalhando até morrer. Eu estava na prisão. Ouvi dizer que ela tinha morrido. Não, eu tinha acabado de chegar a Copenhague quando soube de sua morte. Uma viagem terrível, vil, sim - a orquestração perfeita. Abominável. Mas as coisas só são abomináveis de um lado, não esqueça, hein? E, você sabe... a experiência é uma lâmpada fraca que só ilumina aquele que a carrega... e incomunicável... Tenho que manter isso para mim mesmo. Para mim, você só tinha o direito de morrer quando tivesse uma boa história para contar. Para entrar, você conta a sua história e passa. Isso é o que Morte a crédito significa, simbolicamente. a recompensa da vida sendo a morte. Vendo que... não é o bom Deus que rege, é o demônio. O homem. A natureza é repugnante, olhe só para ela, a vida dos pássaros, a vida animal.

- Alguma vez o senhor foi feliz em sua vida?


L.F. Céline: Muito feliz, nunca, acho. Porque o que você precisa, quando fica velho... Acho que, se me dessem bastante grana para ficar a salvo das necessidades. .. eu adoraria isso. . . eu me daria a oportunidade de me aposentar e ir a algum lugar, daí eu não teria que trabalhar e poderia ficar observando os outros. A felicidade seria estar sozinho à beira-mar e ser deixado em paz. E comer muito pouco; sim. Quase nada. Uma vela. Eu não viveria com eletricidade e trecos. Uma vela! Uma vela, e aí eu leria o jornal. Os outros, eu os vejo agitados, acima de tudo excitados por ambições, a vida deles é um show, uma intensa troca de convites para continuar a performance. Já vi isso, vivi entre pessoas da sociedade uma vez - "Eu digo, Gontran, ouça o que ele lhe disse; ah, Gaston, você estava realmente em forma ontem, eh! Mostrou a ele o que é o que, hein! Ele me contou novamente ontem à noite! Sua mulher dizia: ah, Gaston nos surpreendeu!" É uma comédia. Passam seu tempo nisso. Caçando-se uns aos outros, encontrando-se nos mesmos clubes de golfe, nos mesmos restaurantes.


- Se pudesse passar por tudo de novo, o senhor procuraria suas alegrias fora da literatura?


L.F. Céline: Ah, absolutamente! Não peço alegria. Não sinto alegria. Desfrutar a vida é uma questão de temperamento, de dieta. Você tem que comer bem, beber bem, daí os dias passam depressa, não? Coma e beba bem, dê um passeio de carro, leia alguns jornais, o dia logo se acabou. O seu jornal, algumas visitas, o café da manhã, meu Deus, já está na hora do almoço quando você acabou de dar o seu passeio, hein? Veja alguns amigos à tarde, e o dia se acabou. À noite, cama, como sempre, e olhos fechados. Aí está. E ainda mais assim, com a idade, as coisas vão mais depressa, não vão? Um dia é infinito quando você é moço, ao passo que, quando se está velho, bem cedo ele se acaba. Quando se está aposentado, um dia é um lampejo, quando se é garoto, passa muito devagar.


- Como preencheria o seu tempo se estivesse aposentado e com renda?


L.F. Céline: Eu leria o jornal. Daria um pequeno passeio num lugar onde ninguém pudesse me ver.


- Pode passear por aqui?


L.F. Céline: Não, nunca, não! Melhor não!


- Por que não?


L.F. Céline: Eu seria notado. Não quero isso. Não quero ser visto. Num porto, você desaparece. No Havre.. acho que não notariam um camarada nas docas do Havre. Você não nota nada. Um velho marinheiro, um velho louco...


- E o senhor gosta de barcos?


L.F. Céline: Ah, sim! Sim! Adoro observá-los. Observá-los ir e vir. Eles e o quebra-mar, e eu; fico feliz. Eles soltam fumaça, vão embora, voltam, não é da sua conta, hein? Ninguém lhe pergunta nada! É, e você lê o jornal local, Le Petit Havrais, e... e é isso. Isso é tudo. Ah, eu viveria minha vida de novo de modo diferente.


- Houve, alguma vez, pessoas exemplares para o senhor? Pessoas que o senhor gostaria de ter imitado?


L.F. Céline: Não, porque tudo isso é magnificente, tudo isso; não quero ser magnificente de modo algum, desejo nenhum por tudo isso, só quero ser um velho ignorado. Essas são as pessoas das enciclopédias, não quero isso.


- Quero dizer pessoas que o senhor possa ter encontrado na vida de todo dia.


L.F. Céline: Ah, não, não, não, as vejo sempre ferrando os outros. Elas me dão nos nervos. Não. Aí eu tenho uma espécie de modéstia da minha mãe, uma insignificância absoluta, verdadeiramente absoluta! Aquilo em que estou interessado é ser completamente ignorado. Tenho um apetite, um apetite animal por reclusão. Sim, eu gostaria bastante de Boulogne, sim, Boulogne-sur-Mer. Estive muitas vezes em Saint-Malo, mas isso já não é mais possível. Sou mais ou menos conhecido lá. Lugares a que as pessoas nunca vão...



            (Última entrevista de Céline, 1." de junho de 1961)



- O amor tem muita importância nos seus romances?


L.F. Céline: Nenhuma. Não se precisa disso. É preciso ser modesto quando se é romancista.


- E a amizade?


L.F. Céline: Não mencione isso também.


- Bem, o senhor acha que deve se concentrar em sentimentos sem importância?


L.F. Céline: Você tem que dar conta do recado. É tudo o que conta. E, além do mais, com muita discrição. Fala-se disso com muita, mas muita publicidade. Somos apenas objetos de publicidade. É repulsivo. Tempo virá em que todo mundo tomará uma cura de modéstia. Em literatura como em tudo o mais. Estamos infetados pela publicidade. É realmente ignóbil. Não há nada a fazer senão dar conta do recado e calar-se. Isso é tudo, O público o olha, não o olha, lê ou não lê, e isso é problema dele. O autor tem apenas que desaparecer.

- O senhor escreve por prazer?

L.F. Céline: De jeito nenhum, absolutamente não, Se tivesse dinheiro nunca escreveria. Artigo número um.


- Escreve por amor ou ódio?


L.F. Céline: Ah, de jeito nenhum! É problema meu, se aprovo esses sentimentos de que você está falando, amor e amizade, mas não é problema do público!


- Seus contemporâneos lhe interessam?


L.F. Céline: Ah, não, de jeito nenhum. Eu me interessei por eles uma vez para tentar impedi-los de correrem para a guerra. De qualquer modo, eles não foram para a guerra, mas voltaram carregados de glória. Bem, quanto a mim. meteram-me na prisão. Eu me meti em apuros ao me importar com eles. Não devia ter me importado, Só tinha a mim mesmo com que me importar.


- Em seus últimos livros ainda há um certo número de sentimentos que o revelam.


L.F. Céline: Você pode revelar a si mesmo de qualquer maneira. Não é difícil.


- Está dizendo que quer nos persuadir de que não há nada de mais intimamente seu em seus últimos livros?


L.F. Céline:  Ah, não, íntimo, não, nada. Pode haver uma coisa, uma única coisa, que é que eu não sei como gozar a vida. Tenho uma certa superioridade sobre os outros, que são, no fim das contas, podres, já que estão sempre gozando a vida. Gozar a vida, isto é, beber, comer, arrotar, foder, um monte de coisas que deixam um cara vazio ou tolerante. Eu não sou um gozador, de jeito nenhum. Então, bem, isso funciona muito bem. Sei selecionar. Sei provar, mas, como diz o romano decadente: Não é só ir ao bordel, é não sair de lá que conta, não é? Eu estive lá - toda a minha vida nos bordéis, mas saía de lá depressa. Não bebo. Não gosto de comer. Tudo isso é para os merdas. Tenho o direito, não tenho? Tenho só uma vida: é dormir e que me deixem sozinho.

- Quem são os escritores em quem o senhor reconhece um verdadeiro talento literário?


L.F. Céline:  Há três pessoas que eu sentia, no grande período, que eram escritores. Morand, Ramuz, Barbusse eram escritores. Tinham o pique. Foram feitos para isso. Mas os outros não são feitos para isso. Pelo amor de Deus, são impostores, são um bando de impostores, e os impostores são os mestres.


- Acha que ainda é um dos maiores escritores vivos?


L.F. Céline:  Ah, de jeito nenhum! Os grandes escritores... não tenho que sair por aí lidando com adjetivos. Primeiro você tem que morrer, e, quando você está morto, daí eles o classificam. A primeira coisa que você tem que estar é morto.


- O senhor está convencido de que a posteridade lhe fará justiça?


L.F. Céline: Mas, Deus meu, não estou convencido! Deus meu, não! E talvez não vá nem existir uma França então. Serão os chineses ou os bárbaros que farão o inventário, e vão ficar bem intrigados com a minha literatura, meu estilo de trama e as minhas reticências... Não é difícil. Eu terminei, já que estamos falando de "literatura". Eu terminei. Depois de Morte a crédito eu disse tudo, e não era muito.


- O senhor detesta a vida?


L.F. Céline: Bem, não posso dizer que a adoro, não. Eu a tolero porque estou vivo e porque tenho responsabilidades. Sem isso, sou bem da escola pessimista. Tenho que esperar alguma coisa. Não espero nada. Espero morrer tão sem dor quanto possível. Como todo mundo. Isso é tudo. Que ninguém sofra por mim, por minha causa. Bem, morrer em paz, hein? Morrer, se possível, de uma infecção ou, bem, eu mesmo acabo comigo. Isso ainda seria de longe o mais simples. O que está por vir, isso é o que vai ser mais e mais difícil. Agora eu trabalho muito mais dolorosamente do que há apenas um ano, e o ano que vem vai ser mais árduo que este ano. Isso é tudo.




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J. DARRIBEHAUDE, J. QUENOT, ANDRÉ PARINAUD e CLAUDE SARRAUTE

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