sexta-feira, 13 de maio de 2011

Caso Céline ou a vigilância platônica contra os poetas, por Leda Tenório da Motta

Os poetas gementes narram acontecimentos atrozes, inventam diálogos terríveis, supõem os deuses transportados, culpam-nos por todos os males existentes na terra, provocam o ânimo lamurioso, atentam contra a temperança, desencorajam os que lutam...  Eis por que é preciso tirar-lhes o direito de mentir, afugentar as fábulas que fazem temer a morte, adotar imitadores capazes de modelar a alma dos jovens, estabelecer um plano de educação para a cidade. Assim escreve Platão, no Livro III de A República, aparentemente esquecido de que a sua própria filosofia é uma dramaturgia, de tal modo que é a personagem Sócrates quem fala, dirigindo-se, depois disso, à personagem Adimanto, para arrematar: “Para nosso uso, teremos de recorrer a um poeta ou contador de histórias mais austero e menos agradável, que corresponda aos nossos desígnios, só imite para nós o estilo do homem comedido e se restrinja na sua exposição a copiar os modelos que desde o início estabelecemos por lei, quando nos dispusemos a educar nossos soldados”. [1]
Mais de dois mil anos depois, é tentador pensar que os mesmos motivos se reencenam, quando outra excelente filosofia, que também recorre à dramaturgia, e também sonha com uma república dos justos, sentindo-se igualmente interpelada pelos excessos da poesia, volta a decretar a sua expulsão para fora dos muros. Não menos notável é que as desmesuras aqui em questão parecem ser, no fundo, as mesmas que levavam o governante-filósofo do passado a almejar a representação tão somente do bom e do belo.
De fato, é o que o desencontro entre Sartre e Céline nos convida a conjecturar. Primeiro, porque a pintura mais que gemente de Céline é de tal modo excessiva que cabe com perfeição no rol dos vícios platônicos. Como terá percebido quem quer que tenha aberto qualquer página deste autor, mesmo que, escolhida ao léu, ela pertença ao que se considera, hoje, ser uma primeira fase da monumental obra celiniana, em que ainda não se cristalizou o estilo da imprecação, nem se fixou aquele narrador que surge ex abrupto, conversando consigo mesmo e fazendo o cômputo de sua vida desastrosa, tema baixo que é o leitmotiv das obras-primas finais, assim desencadeadas: “para falar francamente, muito cá entre nós, eu termino ainda pior do que comecei”. [2] Trata-se, como ressaltaram alguns, de um estilo particular para um mundo particular, o mundo das duas guerras mundiais que abrem o século xx, “immense, universelle moquerie”, [3] que o escritor pôde observar de muito perto, já que esteve particularmente ligado a elas, seja lutando na primeira, o que lhe valeria um ferimento na cabeça, seja inclinando-se, na segunda, como um anti-herói, ao espírito de Vichy. Isso pede a mão de um colorista de tons fortes, menos interessado em ideias que na emoção, capaz de fazer no terreno das palavras o mesmo que os impressionistas e os pontilhistas que “arejaram e fizeram a pintura levantar voo”, como ele mesmo dirá, referindo-se com isso ao fato de que os pontilhistas, que vieram dos impressionistas, foram os precursores da violência fauve. [4]
Segundo, porque, imbuído como estava do papel de maître à penser, e empenhado na reconstrução da França que sai da República de Vichy, Sartre vai inscrever o nome de Céline na lista negra de uma das revistas do século xx: Les Temps Modernes. “Se Céline pôde defender as teses sociais dos nazistas, é que era pago para isso”, formula ele liminarmente em 1945, em um “Portrait de l’antisémite” que é preparado para o número inaugural do prestigioso periódico. Jamais comprovada, e hoje sabidamente falsa, a denúncia reaparece, um ano depois, na abertura das Réflexions sur la question juive, em meio à demonstração sartriana do caráter maniqueísta do antissemita, que, nos termos do filósofo, menos acredita no que pensa sobre os judeus e a conspiração judaica mundial do que precisa disso para explicar o mundo malfeito, imputando-o ao outro. Céline é um catastrofista desse tipo, escreve Sartre. [5] Em nome do ideal de uma literatura engajada, que ele recebe de André Gide, está assim lançado o anátema.


O asno de óculos

Disseminada no campo espiritual do pós-guerra, desde suas fileiras mais bem-pensantes, a denúncia prospera, e eis o escritor banido, como Homero, Hesíodo e Píndaro por Platão. Com a diferença da réplica, que, neste caso, conhecemos. “Que que você quer? Que me assassinem?”, responde o poeta ao filósofo, que ele chama de “asno de óculos”, naquele francês curto e grosso que é a sua marca registrada. Isso está em uma carta mandada do exílio, em que se encontra desde a Liberação, intitulada, o mais poeticamente, À L’agité du bocal (o cara com a boca no trombone?). Editada por um amigo fiel, em uma plaquete datada de 1949, [6] contendo este e outros textos celinianos do período, hoje acessáveis na internet, ela circula por Paris como um direito de resposta da poesia, em um momento mais que delicado da história francesa – e da história da literatura francesa –, em que, por crime de escritura, executam-se autores e editores caídos em desgraça. É o que acontece com Robert Denoël, o jovem belga que se tornara o publisher de Voyage au bout de la nuit (1932), Mort à crédit (1936) e dos Panfletos celinianos – Mea culpa (1936), Bagatelles pour un massacre (1937), L’école des cadavres (1938), Les beaux Draps (1941), opúsculos contendo, entre outras coisas, e mais que qualquer coisa, um delírio antissemita, que radicaliza um discurso típico da França política que se tornaria colaboracionista. Dentre esses escritos, que resumem a obra até aí conhecida, os Panfletos – um gênero na verdade nobre, antes de adquirir o significado que tem hoje, e, aliás, praticado pelos surrealistas, no encalço de Sade [7] –, são aquela parte a que se refere Sartre, antes disso um leitor de Voyage tão entusiasta quanto toda a esquerda francesa. [8]
Proibida de circulação desde 1945, por sua injúria racial, essa retórica virulenta que, para alguns estudiosos, não é desprezível estilisticamente, nem deve ser atribuída a nenhuma ambição de convencimento, mas entendida como puro dispêndio verbal, também está hoje, para o bem e para o mal, ironicamente disponível na internet. Pode ainda ser consultada em um Centre Céline da Universidade de Paris VII, reduto de novos críticos criado no correr dos anos de 1980, em que se ousa pensar que é “de uma beleza selvagem”, [9] e até mesmo a associá-la à fatura do melhor Céline, o do último ciclo romanesco, que os especialistas chamam de trilogia alemã: D’un chateau l’autre (1957), Nord (1960) e Rigodon (1961).


Céline como objeto pensável

Mas nada disso levanta o veto de Sartre. Tanto assim que teremos de esperar os anos de 1960, e a entrada em cena de outra revista francesa do século – a Tel Quel –, com sua predileção pelos poderes subversivos da literatura, em vez dos construtivos, e sua galeria de autores intratáveis, para que, ao lado de Artaud, Georges Bataille, Proust e Francis Ponge, Céline comece a se tornar um objeto pensável. É ao grupo reunido em torno de Philippe Sollers, plataforma amalgamada a outra surgida mais ou menos no mesmo momento, a da “nouvelle critique”, que devemos um progressivo e corajoso enfrentamento dessa verve perigosa, em plena vigência da autoridade sartriana.
É graças à ação da Tel Quel, de par com colaboradores célebres tais que Roland Barthes, Gérard Genette e Julia Kristeva, e menos célebres, mas não menos aguerridos, tais que Henri Godard – o estabelecedor do texto dos romances de Céline para a coleção Pléiade da editora Gallimard – e Jean-Louis Houdebine – que viu no grande ataque de Céline a judeus e não judeus uma “arte do contratempo”, cultivada por todos os grandes cronistas clássicos, de Madame de Sévigné a Saint-Simon, que também escreveram no isolamento [10] –, que podemos reconhecer hoje, com certa tranquilidade, o lugar que esse romancista das duas grandes guerras mundiais, que as monumentalizou, como um Homero contemporâneo, ocupa, não apenas na história da literatura francesa, mas na história da literatura em termos absolutos.
De fato, note-se, a propósito, como já existe um desacato a Sartre, tão elíptico quanto marcante, em Le dégré zero de l’écriture,um dos primeiros livros deBarthes, publicado em 1953, ainda em vida de Céline. Aí, de saída, ele menciona o impronunciável nome do colabo, quando, assinalando a necessidade que tem o escritor moderno de situar-se na linguagem, porque não existe, justamente, o grau zero, o insere, a título de ilustração, entre alguns vultos das letras francesas. “Quase contemporâneos, Mallarmé, Céline, Gide e Queneau, Claudel e Camus, que falaram ou falam o mesmo estado histórico de nossa língua, valem-se de escrituras profundamente diferentes”, escreve Barthes. [11] Sabemos hoje, graças às obras póstumas barthesianas, que, se o crítico põe Céline ao lado de Camus, nem por isso vê aí grandezas iguais. Recuperada em um recente volume de inéditos, existe uma troca de farpas entre ele e o autor de A peste, em que deixa claro que não aprecia a maneira como Camus põe o tema da peste a serviço da moral da Resistência, fazendo dela uma metáfora política. “Pessoalmente, [...] acredito numa arte literal [...] em que as pestes não são nada mais que pestes, e em que a Resistência é toda a Resistência”, escreve ele a Camus. [12] Não se poderia esperar outra coisa de alguém tão ligado à corrente crítica que reabilitou Artaud, que, bem ao contrário de Camus, para quem a cidade deve ser salva da peste, o teatro é por definição pestilencial, a crueldade, uma encenação irrealista e convulsa, que recusa a dignidade intelectual da representação. [13]


O verdadeiro pai: um judeu

Sem ter-lhe dedicado nenhuma longa reflexão – ao contrário de Kristeva, que trabalha com a hipótese de um Céline borderline, cujo substrato fantasmático a interessa e se torna o ponto culminante de um de seus melhores livros – Pouvoirs de l’horreur. Essai sur l’abjection (1980) –, Barthes desde então voltaria muitas vezes ao autor dos Panfletos. De tal modo que o surpreenderemos falando de Céline, nada mais, nada menos, que em sua aulainaugural de 1977 no Collège de France.Isso acontece no trecho do famoso speech, depois recolhido em livro, em que relembra que a “escritura” é um comprometimento do escritor unicamente com sua língua, e a língua do escritor, uma espécie de idiotismo, e desta vez, sim, equipara Céline a alguns grandes homens de letras do passado, indo direto, aliás, à questão política aí envolvida. Esse trecho diz o seguinte: “As forças de liberdade que estão na literatura não dependem da pessoa civil, do engajamento político do escritor, nem mesmo do conteúdo doutrinal de sua obra, mas do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua: desse ponto de vista, Céline é tão importante quanto Hugo, Chateaubriand quanto Zola”. [14]
Além dessas referências explícitas, e até onde pudemos pesquisar, há duas outras na última rodada de conferências de Barthes no Collège de France, pronunciadas em 1979 e hoje reunidas em La préparation du roman (2003). Em uma primeira, o escritor é associado a Artaud, e indiretamente a Proust, quando, falando nos diferentes regimes de vida dos autores, e evocando o exílio de Proust em seu quarto, ele pergunta: “Acaso imaginaríamos um Céline, um Artaud precisando de uma boa lareira para escrever?”. Em uma segunda, é a língua vulgar de Céline – sua escrita da fala, captada ao vivo, como dirão os pesquisadores de Paris VII, tomando o cuidado de acrescentar que isso não se confunde com nenhuma empreitada naturalista – que é trazida a campo, para referendar a briga dos modernos com quaisquer traços do beletrismo. Barthes lembra, nesse ponto, que Céline costumava ironizar o “style de bachot” (o estilo do professorzinho que ensina os autores do programa nas escolas), incluindo nesse linguajar a frase francesa de Voltaire, Renan e Anatole France. [15]
É essa recepção, por certo, que explica a entrada de Céline em 1961, pouco antes de sua morte, na prestigiosa coleção Pléiade da editora Gallimard, que já tinha recusado Proust quarenta anos antes, para depois se retratar, e já tinha feito o mesmo com o autor de Voyage no início da década de 1930, terminando por incorporá-lo nos anos de 1960. A edição crítica do texto dos romances de Céline está hoje, na Pléiade, na altura do quarto tomo. Trata-se do resultado de uma revisão em que se empenhou toda uma brilhante geração, sob a batuta de Sollers, que participa ativamente do processo, não apenas como insuflador da revolta telquelienne, que continuaria a partir dos anos de 1980 em uma nova revista do grupo, a L’Infini, mas como estudioso e apresentador da imensa correspondência trocada entre o escritor e a Gallimard, desde suas primeiras tentativas frustradas de ingressar nesse catálogo prestigioso, até por considerá-la parte da melhor epistolografia francesa. [16]
Toda essa movimentação dos semiólogos repercute junto a outra plataforma de novíssimos, nascida nesses mesmos anos de 1950: a escola dos Cahiers du Cinéma, cujos homens acompanham a revolução dos críticos literários, os quais, por sua vez, também descobrem a nouvelle vague. [17] Como se pode depreender de uma surpreendente menção de François Truffaut a Céline no prefácio de 1966 à primeira edição de seu Hitchcock Truffaut. Ele repete aí os desagravos de Barthes, quando, já no final da apresentação do volume que se transformaria na bíblia dos cinéfilos, para realçar o voyeurismo de seu mestre, põe Céline lado a lado com Hitchcock e escreve: “Louis-Ferdinand Céline dividia as pessoas em duas categorias, os exibicionistas e os voyeurs, e é evidente que Hitchcock pertence à segunda categoria”. [18]
A evocação do nome amaldiçoado pela gauche na abertura do hitchbook é tão mais surpreendente quanto Truffaut descobre, já na idade adulta, que é filho adotivo da família que sempre acreditou ser a sua família legítima, e que seu verdadeiro pai era um judeu, que teve de se esconder durante a Segunda Guerra. É esse trauma infantil que, de modo cifrado, está recolhido no ciclo Doineul, como mostraram os biógrafos, e depois deles os cultores do realizador. [19]


Um money maker vulgar

Ora, o que há de especial nisso é que tudo se passa na mesma França por onde o autor dos Panfletos, há pouco, difundia seus delírios sobre o outro judeu, e onde este filho de pai judeu está, agora, mais atento à arte que à vida dos artistas, inclusive daqueles que injuriaram os judeus. Note-se, a propósito, que o próprio Hitchcock tinha sido posto no limbo pelos críticos nova-iorquinos, por pertencer ao sistema dos estúdios de Hollywood, e pelo mesmo motivo que está na base da acusação de Sartre a Céline, já que o ponto de Sartre é a venalidade do escritor. Do mesmo modo que Hitchcock, antes da intervenção dos homens dos Cahiers, é tido, na costa leste americana, por um money maker vulgar, que enriqueceu fazendo um cinema comercial. O que essa concatenação Céline & Hitchcock ressalta assim, pois, é o embate entre crivos críticos de que dependeu a sorte de alguns criadores importantes do século xx, geniais mas posicionados do lado errado da História. Temos, deste lado, os que passam por cima de considerações estranhas à trama interna das obras, interessando-se, metodologicamente, por linguagens; de outro, os que leem as obras, à la Sainte-Beuve, desde a exterioridade da história que cerca a vida dos autores. Essa é toda a briga entre semiólogos da École des Hautes Études e sociólogos sorbonistas a propósito de como ler Racine, que está na origem rumorosa da nouvelle critique. [20]
Acrescente-se que essa tradição crítica compreensiva representada pelos semiólogos, que revê o cânone da literatura francesa contemporânea, incorporando-lhe os malditos novecentistas, é caudatária das perspectivas críticas de ninguém menos que Walter Benjamin. Pois, antes de todos estes de que estamos falando, e por imprevisível que isso também seja, Benjamin já cita Céline, já o inclui, já lhe dá existência. E do modo mais incisivo: armando uma ponte entre ele e Baudelaire, ou fazendo Céline conversar com Baudelaire, do mesmo modo que Truffaut faz Céline dialogar com Hitchcock, e Barthes, com Proust e Artaud. Como poderá constatar quem abrir seu mais notável trabalho, o inacabado e inacabável Livro das passagens, que se acha, desde 2005, traduzido para o português do Brasil com o título Passagens. Ali, no arquivo temático “Baudelaire”, no qual Benjamin trabalhou, em Paris, ao longo dos anos 1937-1938, em plena era dos Panfletos, ele cita uma das muitas provocações politicamente incorretas do poeta em seu diário Mon coeur mis à nu, um breve fragmento que encerra um voto antissemita de Baudelaire, assim formulado: “Bela conspiração a organizar para o extermínio da raça judaica”. [21] Detendo-se sobre esse convite, não à viagem mas à passagem ao ato persecutório, Benjamin anota conscienciosamente em seu arquivo: “Céline deu prosseguimento a esta linha”. [22]
É uma menção comovente, não só por vir de quem sofreu na pele a perseguição movida aos judeus, mas porque o que Baudelaire sonha assim, em voz alta, seria realidade no final do mesmo século em que ele escreve, com a eclosão do Caso Dreyfus, que Hannah Arendt chamou de “prelúdio ao nazismo”. [23] Além do mais, se quisermos dar todo o valor a essa inesperada nota, talvez seja preciso ouvir aí que Céline descende de Baudelaire. O que não contradiz a visão que o próprio Céline tem de si, embora ele tenha reivindicado a influência de Proust quase tão claramente quanto reivindica a dos pontilhistas e a dos surrealistas, de resto, no mesmo momento, ao sublinhar que o bom escritor é também aquele que sabe lançar mão do que a vida tem para lhe oferecer, que, nesse sentido, Proust estava “na linha dos salões”, enquanto ele, Céline, estava na das guerras. [24] Ele mostra assim, por certo, o quanto quer ombrear-se com Proust. Mas Baudelaire não está longe, se admitirmos que Proust deve mais a Baudelaire que só a memória afetiva. Deve-lhe todo o continente das sensibilidades doentias, toda aquela degenerescência que a mãe e a avó proustianas consideram prejudiciais ao jovem narrador, e a Sra. de Villeparisis, ao seu salão, todas sabendo que isso é influência dos cenáculos deliquescentes em que se cultiva o poeta das Flores do mal. [25] Estamos em uma mesma família de espíritos. Outra prova é que Benjamin faz-se o tradutor e o intérprete de ambos: Baudelaire e Proust.
Se, neste embate entre filosofias, a voz partida de Benjamin atenua a voz sonora de Sartre, salvo engano não existe muito mais que isso como fortuna crítica não aversiva a assinalar. O que se compreende, pois o século será, progressivamente, dos que se pautam pela divisa da lembrança do Holocausto. Dever de memória cuja imposição não vem só de Adorno, o companheiro de Benjamin, que, como se sabe, entendeu reiterativamente o Holocausto como a culminância da História catastrófica, e o pôs no centro de sua reflexão sobre as artes, notadamente a arte da palavra, a poesia. Mas de uma corrente de força tão influente quanto a adorniana, que, de resto, muito se refere a Adorno, aquela representada pelas assim chamadas “literaturas de testemunho” e pelos estudos em torno do tema “catástrofe e representação”.


A vigilância platônica sobre os poetas

E o que é digno de nota é que essa outra corrente parte da seara mesma de Sartre. De fato, uma de suas fontes é Claude Lanzmann,seguidor de Sartre, amigo de Simone de Beauvoir, cofundador, juntamente com o casal, da Le Temps Modernes, e diretor da revista nos anos de 1960 e 1970, antes de voltar-se para o cinema e fazer, nesse campo, uma de suas mais impressionantes revoluções.
Referência paradigmática daqueles outras plataformas críticas interessados nas correlações entre literatura e trauma, Lanzmann é o realizador de Shoah, memorável longa-metragem de 10 horas de duração, que demandou anos de pesquisa de campo antes de ser lançado em Paris, em 1985. Nesse filme estarrecedor, pela primeira vez a realidade dos Lager é mostrada através de depoimentos diretos, e não de documentos de arquivos. Dirigidos com firmeza por Lanzmann, falam aí, longa e perturbadoramente, diante de uma câmera, no mais das vezes estática, que dá ao filme uma dimensão teatral, sobreviventes judeus encontrados por toda a Europa, carrascos nazistas e poloneses testemunhas oculares dos fatos. É esse trabalho colossal desse seguidor de Sartre, em que Beauvoir, reconhecendo a mão do artista, veria “uma mistura de horror e poesia”, [26] que vai introduzir a nomeação “shoah”, palavra hebraica que significa catástrofe, desde então preferida a “holocausto”, por ser um apelativo menos sacrificial. É ele também que, associado à obra mais notória do italiano Primo Lévi – É isto um homem? (1947) –, impulsiona uma safra de narrativas sobre os campos de extermínio, que, desde então, não cessam de nos chegar. Essa produção mobiliza, por seu turno, cada vez mais, estudiosos que, referindo-se aos ensaios de Freud sobre as neuroses de guerra, pautam-se por pensar que sem catástrofe não há representação, e por admitir que a catástrofe absoluta é a “shoah”, o que conecta, de pronto, a mais alta literatura a essa precisa missão testemunhal.
Não é de estranhar que, sob o amparo de Lanzmann, ganhe força a vigilância platônica sobre os poetas. Isso faz recuar, novamente, as chances de Céline na França, e explica o fato de o escritor ser quase completamente desconhecido no Brasil, onde os críticos da “catástrofe e representação” são brilhantes e ativos, [27] e onde Céline inexistiria não fosse o trabalho tradutório de Rosa Freire d’Aguiar, [28] que realiza o impossível ao verter com extrema eficiência o parigot celiniano. Língua tão pouco convencional, tão capaz de “tirar as palavras do eixo” – para lembrar palavras do próprio Céline [29]–, que Henri Godard achou bom providenciar um Vocabulaire populaire et argotique para figurar em apêndice a todos os tomos dos Romans.
Devemos também à tradutora a audácia de tomar Céline pela palavra e de colocá-lo “na linha de Proust”, como faz na sua introdução a Viagem, ao dizer que “tudo o que em Proust era delicadeza, fineza, meios-tons, harmonia, em Céline é grosseria, crueza, violência, deformação”, e que “foi este o grande achado de Céline, ser um Proust da plebe, segundo um crítico da época”. [30]
Em que pese este seu retrato de Proust ser idealizado – a fineza, a delicadeza, a harmonia ... –, ela tem razão. Até porque, ao lado das reticências, que tanto o caracterizam, e que também o levam a remeter-se ao pontilhismo – “Seurat punha três pontos em tudo” [31] –, e dos pontos de exclamação – que se multiplicam em seu texto vazado e reduzem a longa frase proustiana a enunciados curtíssimos, revertendo a puxada de ar proustiana em fôlego nenhum –, a hipérbole é a figura que mais recorre na letra do texto de Céline. E ela tem aí a mesma função que tem em Baudelaire, defensor da caricatura e do riso que a acompanha: a função sempre melancólica de conduzir para baixo. [32] Tome-se uma sequência de Nord, romance escrito na França em 1957, na volta do exílio, cuja ação se passa em Berlim, em 1944, às vésperas da tomada da cidade, em que o narrador, a mulher e um amigo vão tirar a fotografia para o visto de permanência na Alemanha, e as caras nas fotos ensejam a Céline dizer: “Lili, moi, La Vigue, on a changé de tronches! ... le flic de la Polizei a raison... je m’ocuppe pas beaucoup de ma figure, mais là vraiment de quoi s’amuser! ... des yeux, des calots qui ressortent ... et puis des joues du tout!... des bouches flasques... comme des noyés... tout les trois!... on est vraiment devenus horribles... trois monstres... pas niable!... comment on est passé monstres?”. [33] Não poderia haver representação mais perfeita de uma catástrofe pessoal.
Mas a tradutora tem principalmente razão porque essa afirmação corajosa, que põe Céline no topo da literatura, justamente por ousar derrubar o melhor modelo literário disponível, tem a vantagem de chamar a atenção para o memorialismo de Céline, que, de fato, é proustiano. Primeiro, porque, a partir de determinado momento, a crônica memorial celiniana, que em Voyage, onde fala certo Robinson,se verte em terceira pessoa, vai se tornando puro solilóquio, e a única coisa palpável que se tem é a mesma que nos propõe Proust: o fio de voz. Segundo, porque, como acontece em Proust, o presente, o passado e o futuro estão aqui entrecruzados e confundidos, de tal modo que, lendo Céline, também não podemos saber de onde fala o narrador, se de Baden-Baden, para onde refluiu a República de Vichy, quando os aliados entraram na França, se da prisão na Dinamarca, onde o escritor em fuga da Alemanha é alcançado pelas autoridades franceses e preso, ou se de Meudon, subúrbio parisiense em que o médico-escritor abre seu último consultório e escreve suas derradeiras impressões sobre a tragédia de sua existência. Terceiro, porque, assim como Proust, sob o impacto do envelhecimento do salão Guermantes, chama de “féerie” o espetáculo do Tempo, que ele grafa com maiúscula, [34] o que Céline também faz, ocorre a Céline, perversamente, tomar a guerra como espetáculo e chamá-la “féerie”. É a palavra que vibra no título do livro que faz a ponte entre Voyage e a trilogia alemã – Féerie pour une autre fois –, muito embora, por uma questão de ritmo de trabalho, este outro depoimento colossal, dividido em duas partes – Féerie I e Féerie II –, ocupe o quarto tomo dos Romans.
Reivindicando Proust e Seurat, e de resto os refazendo, assim como Proust refaz os escritores que estão na chave de Bergotte e os pintores que supõe o ateliê de pintura de Elstir, Céline diz muito a que vem. Mas como não precisamos necessariamente da opinião que o escritor tem de si mesmo para tentar compreendê-lo, talvez pudéssemos acrescentar, a esses laboratórios artísticos em que se move imaginariamente o mais importante romancista francês do século xx ao lado de Proust, outra pintura excessiva, até porque ela também tem tudo para entrar no salão dos recusados.
E se Céline, com sua escola de cadáveres, fosse, em literatura, o equivalente de um Francis Bacon?

Leda Tenório da Motta é professora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, crítica literária e tradutora. Publicou, entre outros, Proust A violência sutil do riso (Perspectiva, 2007), Prêmio Jabuti 2008 na categoria Teoria-Crítica Literária.
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Notas:
  1. Platão, A República, Livro III, 398 a. Tradução do grego de Carlos Alberto Nunes. Coordenação de Benedito Nunes. Belém: Editora Universitária EDUFPA, 2000, p. 154. Tradução cotejada com a edição francesa da Belles Lettres, Paris, 1948, pp. 191-192.
  2. Essa é a abertura de D’un chateau l’autre. Romans II. Paris: Gallimard-Pléiade, 1974, p. 3.
  3. Céline, Voyage au bout de la nuit, Romans I, op. cit., p. 12.
  4. Os verbos aqui empregados são “aérer” e “voltiger”. Cf. Céline, “Louis-Ferdinand Céline vous parle”, texto transcrito a partir de um depoimento gravado em 1957, inserido em apêndice ao Romans II, p. 934.
  5. Jean-Paul Sartre, Réflexions sur la question juive. Paris: Gallimard, 1954, pp. 47-48. Col. Idées.
  6. Albert Paraz, Le gala des vaches. Paris: Lanauve de Tartas, 1948.
  7. De fato, note-se que o entremeio “Franceses mais um esforço ....”, que se insere entre os diálogos em A filosofia na alcova, é um panfleto. Trata-se de uma forma polemizante de que muito se valerão os surrealistas em seus textos de combate.
  8. Sobre a fortuna crítica dos primeiros romances de Céline, cf. o capítulo “Céline” de meu Lições de literatura francesa. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
  9. Julia Kristeva, Pouvoirs de l’horreur. Essai sur l’abjection. Paris: Seuil, 1980, p. 205.
  10. O crítico refere-se a autores como Villehardouin, Joinville, Agrippa d’Aubigné, Madame de Sévigné e Saint-Simon. Cf. Jean Louis Houdebine, “La poésie est-elle mortelle?”, Revue L’Infini n. 37. Printemps 1992.
  11. Roland Barthes, Le dégré zero de l’écriture. Paris: Seuil 1972, p. 15. Col. Points.
  12. Roland Barthes, “Resposta de Roland Barthes a Albert Camus”. .Inéditos, Vl. 4. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 59.
  13. Tudo isso magnificamente comentado por Jacques Derrida no capítulo “O teatro da crueldade e o fechamento da representação”, em A escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1995.
  14. Roland Barthes, Leçon. Paris: Seuil, 1977, p. 17.
  15. Roland Barthes, La préparation du roman. Cours et séminaires au Collège de France (1979-1979–1979-1980). Texte établi, annoté et présenté par Nathalie Léger. Paris: Seuil/IMEC, 2003, p. 354.
  16. Céline, Lettres à la NRF 1931-1961. Édition établie, présentée et annotée par Pascal Fouché. Préface de Philippe Sollers. Paris: Gallimard, 1991.
  17. Cf. Louis-Jean Calvet, Roland Barthes Uma biografia. Tradução de Maria Ângela Vilela da Costa. São Paulo: Siciliano, 1993, p. 163. O autor nota aí que La femme mariée (1964), de Godard, incorpora as Mitologias de Barthes.
  18. François Truffaut. Hitchcock Truffaut. Paris: Gallimard, 1993, p. 14.
  19. Antoine de Baecque, Serge Toubiana, François Truffaut Une biographie. Paris: Gallimard, 1996. Col. Gallimard-Biographies.
  20. História, como se sabe, iniciada com a publicação do livro de Barthes Sur Racine (1963), que é inteiramente retomada pelo próprio Barthes em Critique et vérité (1966).
  21. Charles Baudelaire, Mon Coeur mis à nu LXXXIII, Oeuvres Complètes. Paris: Seuil, 1968, p. 640.
  22. Walter Benjamin, “Baudelaire”, Passagens. Organização de Willi Bolle. Tradução de Irene Aron, Cleonice Paes Barreto Mourão e Patrícia de Freitas Camargo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006, p. 344.
  23. Hannah Arendt, Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 119.
  24. Céline, “Louis-Ferdinand Céline vous parle”, op. cit., pp. 931-932. Grifo meu.
  25. Marcel Proust, À l’ombre des jeunes filles em fleurs / À la recherche du temps perdu. Paris: Gallimard-Pléiade I, 1954, p. 727.
  26. Simone de Beauvoir, “La mémoire de l’horreur”, texto de introdução a Claude Lanzmann, Shoah. Paris: Fayard, 1987,pp.7-10.
  27. Vejam-se, por exemplo, os esforços de Arthur Nestrovski e Marcio Seligmann, organizadores do volume Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000. Volume em que eu mesma, por generosidade dos organizadores, assino um deslocado capítulo sobre Céline.
  28. Ela responde por Viagem ao fim da noite (1995), Vida e obra de Semmelweis (1998) e De um castelo para o outro (2005), todos pela Companhia das Letras. Enquanto a tradução de Morte a crédito foi realizada por Vera de Azambuja Harvey e Maria Arminda Souza Aguiar para a Nova Fronteira (1982).
  29. “Ce style est fait d’une certaine façon de forcer les phrases à sortir légèrement de leur signification habituelle, de les sortir des gonds, pour ainsi dire”, declara Céline. “Louis-Ferdinand Céline vous parle”, Romans II, op. cit., p.933.
  30. Rosa Freire D’Aguiar, “Apresentação” em Céline, Viagem ao fim da noite. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 6.
  31. Céline, “Louis-Ferdinand Céline vous parle”, Romans II, idem, ibidem.
  32. Charles Baudelaire, De l’essence du rire. Et généralement du comique dans les arts plastiques. Texto em prosa inserido na seção Curiosités Esthétiques da edição Gallimard-Pléiade das Oeuvres Completes. Paris: Gallimard, 1951.
  33. Céline, Nord, Romans II, op. cit., p. 348.
  34. Marcel Proust, Le temps retrouvé / À la recherche du temps perdu, Vl. III, op. cit., p. 924.

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