Minha história não tinha ganho nada com o tempo. Depois de anos de esquecimento, uma obra de imaginação não passa de uma festa antiquada... Afinal, Gustin ia me dar sua opinião sincera e imparcial. Fui logo fazendo com que ele entrasse na atmosfera da lenda.
- Gustin, você nem sempre foi o boçal que é hoje, endurecido pelas circunstâncias, pela profissão, pela bebida e pela necessidade de aceitar tanta coisa ruim... deixar o coração e o pau pulsarem com mais força, ouvindo uma epopéia, trágica, naturalmente, mas nobre... brilhante!... Você ainda é capaz disso?...
Gustin deixou-se ficar, no banquinho, sonolento, diante das amostras e do armário escancarado... Sem dar um pio... não queria me interromper...
- Eu tinha avisado que se tratava de Givendor o Magnífico, Príncipe da Critiânia... Chegamos... Agora mesmo, enquanto eu falo com você, ele está agonizando... O sangue escorre de vinte feridas...
O exército de Givendor acaba de sofrer uma derrota tremenda... O próprio rei Krogold, durante a luta, encontrou Givendor... Golpeou-o de alto a baixo... Krogold não perdoa... Faz justiça por suas próprias mãos... Givendor traiu... A morte se abate sobre Givendor e vai terminar sua tarefa...
"O tumulto do combate esmorece com os derradeiros clarões do dia... Desaparecem ao longe os últimos guardas do Rei Krogold. Na sombra levantam-se os estertores da imensa agonia de todo um exército... Vitoriosos e vencidos entregam a alma como podem... O silêncio abafa pouco a pouco os gritos e gemidos, cada vez mais fracos, cada vez mais raros... Esmagado sob um monte de correligionários, Givendor o Magnífico esvai-se em sangue... De madrugada a morte chega perto dele.
- Compreendeste Givendor?
- Compreendi, oh Morte! Compreendi desde o começo deste dia... Senti no coração, no meu braço, nos olhos de meus amigos, até no passo de meu cavalo, uma espécie de sortilégio triste e lento que se assemelhava ao sono... Minha estrela se apagava entre tuas mãos geladas! Tudo começou a fugir! Oh Morte! Que remorsos! Sinto uma vergonha imensa!... Olha esses pobres corpos!... nem uma eternidade de silêncio pode acalmá-la!...
- Não há paz neste mundo, Givendor! Só lendas! Todos os reinos acabam num sonho!...
- Oh Morte! Deixa-me viver um pouco mais... um dia ou dois! Quero saber quem me traiu...
- Tudo é traição, Givendor... As paixões não são de ninguém, o amor, principalmente, é só uma flor de vida no jardim da juventude.
E a morte, devagarinho, segura o príncipe... Ele não se defende mais... Ficou leve, sem peso... E depois um lindo sonho se apodera de sua alma... O sonho que sempre, quando era pequeno, no seu berço de peles, no quarto dos Herdeiros, perto de sua ama morávia, no Castelo do Rei René..."
Gustin tinha deixado as mãos caírem entre os joelhos...
Estava desconfiado. Não queria voltar à juventude. Defendia-se. Quis que eu explicasse tudo... por quê?... como?... Não é fácil... É frágil como uma borboleta. Por qualquer coisa se desmancha, suja as mãos. O que é que se ganha com isso? Não insisti.
Para organizar bem a trama da minha Lenda eu poderia documentar-me com pessoas finas,,, acostumadas aos sentimentos... às mil variantes das tonalidades do amor...
Mas prefiro resolver tudo sozinho. O meu problema é o sono. Se eu conseguisse sempre dormir bem, nunca teria escrito uma linha.
Muitas vezes as pessoas refinadas nada mais são do que gente que não pode gozar. É uma simples questão de disciplina. Essas coisas não se perdoam. Mesmo assim, vou descrever o castelo do Rei Krogold:
"... Um monstro tremendo no âmago da floresta , uma massa, acachapada, esmagadora, cortada no rochedo... formada de cloacas, cornijas carregadas de frisos e saliências... de outras torres... De longe, lá do lado do mar... as copas da floresta ondulam e vêm bater no sopé das primeiras muralhas...
A sentinela que arregala os olhos com medo da forca... Mais alto... Bem no alto... No topo de Morehande, a Torre do Tesouro, o Estandarte tatala na tormenta... Leva as armas reais. Uma serpente com a cabeça cortada e o pescoço escorrendo sangue! Malditos os traidores! Givendor está expiando seu crime!..."
Gustin não aguentava mais. Estava cochilando... chegava a roncar. Virei-me para fechar o armário de remédios e lhe disse: "Vamos embora! Vamos dar um passeio pelo Sena!... Vai-te fazer bem..." Ele preferia não ter que se mexer... Afinal, como eu insisto, ele resolve. Proponho um cafezinho do outro lado da "Île aux Chiens"... Lá, apesar do café, ele torna a adormecer. Já devem ser quatro horas, é o momento em que sonham os botequins... Há três flores artificiais no vaso de lata. Tudo fica esquecido no cais. Até o velho bêbedo debruçado no balcão se convence de que a dona não vai mais escutar suas histórias. Eu deixo Gustin em paz. O próximo rebocador que passar vai acordá-lo, com certeza. O gato largou a velhota para vir lamber as patas.
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