sexta-feira, 28 de março de 2014

A violência do discurso e o discurso da violência

A violência do discurso e o discurso da violência: Céline versus Sartre

Adson Cristiano Bozzi

 

“Mas se Hitler me dissesse Ferdinand, é a grande partilha! Partilharemos tudo! Ele seria meu amigo! Os judeus prometeram partilhar, mas eles, como sempre, mentiram...”
Louis-Ferdinand Céline. Bagatelles pour un massacre, 1937.
“O teu amigo Hitler, Louis-Ferdinand,
Teria podido te dizer, tanto o caso é conhecido,
Que o sangue dominado e o sangue dominante
Têm a mesma cor no crematório.”
Pierre Perret. Ferdinand, 1998.
Quem, de alguma maneira, frequenta o mundo acadêmico sabe que este é povoado de paixões inúteis e de vaidades fúteis (e igualmente inúteis). Mas poucos, entre nós, se dão o trabalho de registrar por escrito os seus descontentamentos e ressentimentos. 

Mas este não parece ser o caso da França, cuja história das letras no século passado é pródiga em rompimentos midiáticos entre intelectuais, como ocorreu com um intelectual brilhante e politicamente atuante, Jean-Paul Sartre, com outros não menos conhecidos, como Merleau-Ponty e Camus, com quem o existencialista rompeu publicamente (1). Contudo, talvez o mais espetacular e mais dramático dos rompimentos tenha ocorrido entre Sartre e o igualmente romancista Louis Ferdinand Céline. 



Ao contrário dos dois casos citados acima, em que havia uma afinidade intelectual e ideológica, além de uma relação de amizade, Sartre e Céline não se frequentavam e não possuíam uma relação de proximidade ideológica. Nesse sentido, o rompimento se deu unicamente através das letras, mas, como já escrevemos, não foi por isso menos dramático e nem menos visceral.

Feitas estas breves considerações, elucidemos o contexto no qual este rompimento público ocorreu. Céline, romancista revolucionário, autor dos consagrados Mort à crédite Voyage au bout de lanuit, tinha uma convicção política que o tornava, por assim dizer, “infrequentável”, o antissemitismo. Depois da Segunda Guerra, ele foi preso e julgado (nessa ordem), devido a sua militância intelectual nesse espectro ideológico responsável pelo holocausto. E, ao menos aparentemente, ele jamais negou o seu antissemitismo, como podemos ler nessa entrevista, ocorrida no ano de 1960, concedida a Jacques Darribehaude:


J.D.: E o antissemitismo surgiu no senhor a partir dessa tomada de consciência?
L.-F.C.: Ah, bem, eu vi um outro explorador. A Sociedade das Nações, eu vi muito bem que era através dela que isto ocorria (2).


Ainda que neste trecho citado o seu antissemitismo não tenha sido declarado, não o é, todavia, negado, e esta posição política, por parte de Céline, era pública e foi manifestada em alguns dos seus textos (3). Em 1945, Sartre escreveu e publicou estas linhas sobre a posição do seu colega de letras: “Se Céline pôde sustentar as teses socialistas dos Nazistas, é porque ele era pago” (4).

 Três anos mais tarde, Céline teria tomado conhecimento deste texto e resolvido escrever e tornar público um panfleto intitulado A l’agité du bocal, no qual, com uma violência até então inédita, respondeu a Sartre e se defendeu da acusação de ter sido um escritor pago pelo regime alemão e, portanto, de ter sido um colaboracionista (no sentido descrito por Sartre) (5). Um bom exemplo deste texto – e da sua virulência – seria este: “Eis então o que escreveu este pequeno besouro Rola-Bosta [bousier no original] enquanto eu estava na prisão correndo o risco de ser enforcado” (6). E Céline continuou, página após página: “O que você está querendo? Que me assassinem! É evidente!” (7). E, ainda: “Esses olhos de embrionário? Esses ombros mesquinhos?... Essa pequena grande pança? Uma tênia, é claro, um homem tênia localizado onde bem se sabe... e filósofo!...” (8). E ainda mais: “Você é mau, sujo, ingrato, odioso, inteligente como um asno, e isso não é tudo, J.-B. Sartre” (9). Ora, estas são as vociferações de um homem que caiu em desgraça (com a vitória aliada sobre os alemães), que tinha sido abandonado por todos, que conhecia as mais diversas privações morais e financeiras, e que sequer podia caminhar livremente, como se pode ler na já citada entrevista: “Lugares onde ninguém nunca vai. Eu frequentei bastante Saint-Malo, mas não é mais possível... Lá eu sou mais ou menos conhecido” (10).


Estivemos no universo de um discurso de uma violência inaudita de um intelectual contra outro, a “violência do discurso”, que foi uma defesa de um homem caído emdesgraça contra o que ele julgou ser um “discurso da violência”, o qual supostamente contribuiria para a sua condenação à morte (11). Com esta sumária descrição, estamos muito longe do ambiente de discordância intelectual que levou o rompimento de Sartre com Camus e com Merleau-Ponty e entramos em um ambiente no qual as palavras são utilizadas no seu limite. E o discurso do conceito, no caso de Sartre, dá lugar à suposição leviana (que Céline era antissemita era um fato, mas que ele teria sido pago pelos nazistas é meramente uma suposição escrita e publicada enquanto ele poderia ser condenado à morte) e à vociferação, e ao impropério (no caso de Céline). Contudo, tudo isto deve ser compreendido dentro do seu contexto devido: a derrota e a humilhação da França, a descoberta do extermínio em massa dos judeus, a emergência da arma nuclear e as incertezas de um mundo ainda em construção.Estávamos em um mundo longe de ser racional e “neutro”, e, contrariando Hegel, afirmaríamos que ele era real.


Posto isto, resta ainda uma questão. Muito provavelmente Sartre não tinha a intenção de causar a morte de Céline, ficcionista que ele admirava profundamente (12), e as posições deste último eram, desnecessário escrever, condenáveis, mas,  até que ponto as posições políticas de um autor devem condenar a sua obra? Afirmei, no início deste breve artigo, que Céline foi o autor de dois celebrados romances, e a sua posição política, então, deveria condenar ao “exílio intelectual” a totalidade da sua obra? Esta incômoda pergunta merece ser colocada e discutida em um espaço democrático, até porque romancistas e filósofos de posições políticas dúbias ou, simplesmente, condenáveis, não faltam. Devemos conceder que, ao “pé da letra” parte da obra de Nietzsche não poderia ser lida e, a este título, deveria ser objeto de censura, e o mesmo vale para Heidegger se pensarmos na sua carreira acadêmica (13). Ora, o próprio Sartre poderia facilmente ser acusado de misoginia, se nos restringirmos ao seu comportamento em relação às mulheres e a esta pequena frase (raramente comentada) de um texto de 1945:
Em um andar de prédio, encontramos “em torno de uma mesa de chá” algumas destas grande mulheres de cabelos cinzas, inteligentes como homens, que, desde a guerra, representam a maioria destas associações (14).

Ora, a frase de Sartre somente poderia ser aceita se a lêssemos desta maneira: “inteligentes à maneira dos homens”; mas nem essa leitura a tornaria mais elegante. Contudo, não queremos comparar eventuais “derrapadas” a uma profunda – e nefasta – convicção política, apenas salientamos que o mundo das letras está pleno de conflitos e mal-entendidos, assim como de apreços e desapreços. A crucial diferença, neste caso, é que o rompimento se deu em uma época cujas incertezas eram numerosas; o mundo havia acabado de passar por uma enorme carnificina e havia conhecido o extermínio não apenas em massa, mas premeditado, frio e quase burocrático. Nesse sentido, tanto a “frase assassina” de Sartre quanto o panfleto violento de Céline podem ser compreendidos como o “acerto de contas” com uma época passada. Ora, não foi o romancista francês que abriu o seu panfleto antissemita com a provocadora epígrafe, retirada do Almanach des Bons-Enfants, segundo a qual “não vai para o paraíso aquele que falece sem ter acertado todas as suas contas”?




notas
1
A sua biógrafa mais famosa, Annie Cohen-Solal, definiu estes rompimentos nestes termos: “Camus, Nizan, Fanon, Merleau: em 1960 e 191 Sartre vai acertar as contas, para o bem e para o mal, com estes quatro amigos” (1999, p. 729). Especificamente sobre o rompimento com Camus, citemos Lévy: “Resposta de Sartre [a uma carta de Camus à revista Les temps modernes], que, mordido, toma ele mesmo a pena: ‘diga lá, Camus, por qual mistério não se podem discutir suas obras sem que isso afete as razões de vida da humanidade? por qual milagre as objeções que lhe são feitas se tornam, de imediato, sacrilégio? ah, meu Deus, Camus, como você é sério e, para usar uma das suas palavras, como é frívolo! e se você estiver enganado? e se o seu livro [L’homme revolté] simplesmente demonstrasse a sua incompetência filosófica? e se ele fosse feito de conhecimentos apressadamente colhidos, e de segunda mão?’ A imprensa da época, os jornais e periódicos escandalosos, Samedi-Soir tanto quanto Le Monde, apoderam-se do evento, incentivam-no e atiçam, é claro, a briga. A partir desse dia, está tudo acabado” (2000, p. 355).
2
CÉLINE, Luis Ferdinand. A l`agitédu bocal. Paris: Herne, 2011, p. 77.
3
O seu mais famoso panfleto antissemita é o Bagatellespourun massacre, publicado em 1937 e jamais reeditado após o fim da Segunda Guerra Mundial, no qual ele acusa os judeus de realizarem uma “conspiração de silêncio”. Esta questão, infelizmente, ainda é atual na França. O humorista francês Dieudonné M`balaM`bala esteve, recentemente, no centro de uma polêmica que terminou com a proibição dos seus espetáculos pelo governo francês, uma vez que eram julgados, ao menos parcialmente, como antissemitas. Dieudonné foi criador da polêmica saudação “antissistema” chamada de quenelle, na qual um braço aponta para o solo enquanto outro se posiciona no ombro, a qual tem sido identificada como uma espécie de saudação nazista. No mês de fevereiro deste ano este humorista foi proibido de entrar na Grã-Bretanha, onde ele faria uma manifestação de solidariedade ao jogador de futebol Nicolas Anelka, que provavelmente será suspenso por fazer a quenelle durante a comemoração de um gol em uma partida do campeonato inglês. Recentemente, causou comoção, na França e na Bélgica francófona, a descoberta de que Herman van Rompuy, político flamengo, havia publicado em seu site um poema de um padre nacionalista flamengo e antissemita, Cyriel Verschaeve, que havia sido admirador do Nazismo e colaborador desse regime durante o período em que Bélgica esteve sob ocupação alemã. Ora, van Rompuy não é apenas um político regional, ele é o atual Presidente do Conselho Europeu...
4
Segundo a introdução da edição de que nos servimos, esta frase foi escrita por Sartre em Portrait d`un Antisémite, publicado em Les Temps Modernes em Dezembro de 1945, e retomado mais tarde com o título Réflexions sur La question juive, pela prestigiosa editora Gallimard. Para maiores detalhes, ver referências.
5
Bernard-Henri Lévy comentou brevemente a história deste texto: “Lembramo-nos, sobretudo, da incrível violência da resposta de Céline, enviada a Paulhan, mas recusada, e publicada por Albert Paraz no final do seu livro Le gala desvaches, sob o título A l`agitédu bocal (...)” (2000, p. 103).
6
CÉLINE, Luis Ferdinand. Op. Cit.,  p. 09.
7
Id., p. 11.
8
Id., p. 12.
9
J.-B. Sartre: ironia de Céline, Jean-Paul Sartre metamorfoseia-se em Jean-Baptiste Sartre.
10
CÉLINE, Luis Ferdinand. Op. Cit.,  p. 86
11
Isto, ao nosso ver, seria exagerar a influência política de Sartre na França do pós-guerra, mas, de qualquer sorte, todos sabemos quem travava a “boa luta”, e não era, certamente, Céline…
12
Citamos Simone de Beauvoir: “A atenção que prestamos ao mundo era assaz rigorosamente pelos tropismos de que falei; éramos capazes, entretanto, de certo ecletismo, líamos tudo o que aparecia; o livro francês que se nos afigurou mais importante foi Voyage aubout de na nuit de Céline. Sabíamos de cor uma porção de trechos” (1984, p. 138).
13
E não apenas na sua carreira, mas em certa parte do seu pensamento, como podemos observar aqui: “Pois a língua grega, medida pela possibilidade do pensamento, é, ao lado da alemã, a mais poderosa e a mais cheia de espírito”(1999, p. 85). Desta frase alguns deduziram de que somente era possível filosofar em Grego e Alemão. Sobre a “zona de sombras” da carreira acadêmica de Heidegger remeto o leitor ao subcapítulo 5 da primeira parte do livro O século de Sartre de Bernard-Henri Lévy.
14
2003, p. 68. Grifo do autor.


referência bibliográfica

BEAUVOIR, Simone de. A força da idade. Trad.: Sérgio Millet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
CÉLINE, Luis Ferdinand. A l`agitédu bocal. Paris: Herne, 2011.
COHEN-SOLAL, Annie. Sartre 1905-1980. Paris: Gallimard, 1999.
HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Trad.: Emmanuel carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.
LÉVY-BERNARD-HENRI. O século de Sartre. Trad.: Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

sobre o autor

Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima é Coordenador do Topoi, grupo de pesquisa em imaginário urbano & ideias arquitetônicas. Endereço eletrônico: <http://topoi-grupodepesquisa.blogspot.com.br/2012/09/topoi-grupo-de-pesquisa.html>

 

terça-feira, 18 de março de 2014

Artigo: Voyage au bout de la nuit e a crise do realismo, por Daniel Garroux

Daniel Garroux* 


O romance Voyage au bout de la nuit, publicado em 1932, tem sido classificado pelos críticos como “picaresco”, “filosófico”, “de formação” etc. No que pese o valor dessas caracterizações, acredito que seja mais proveitoso partir da análise cerrada da obra para
depois tentar situar Voyage... em um contexto mais a mplo de questões. Para isso, tomo como ponto de partida as relações entre a posição do narrador e o estilo, ancorando as hipóteses interpretativas na objetividade do texto e adensando pouco a pouco o enigma que a esfinge celineana nos propõe.
Ao colocar seu leitor diante de um fluxo discursivo não-linear que emana de uma
consciência cindida por experiências traumáticas, a narrativa de Voyage...
subverte alguns dos pressupostos de que o gênero do romance havia se servido até então, como o tratamento ilusionista de tempo e espaço, o predomínio da função referencial da linguagem e a construção de personagens autônomas, dotadas de psicologia complexa. O romance realista do século XIX, em larga medida, apoiava-se sobre uma “consciência central”
(geralmente oculta sob a forma de um narrador em terceira pessoa) que organizava o
material empírico antes de transmiti-lo ao leitor. 
Em Voyage...a certeza dessa consciência central se encontra abalada, e o difícil processo de tentar recompor a experiência por meio da linguagem é exposto ao leitor.
Embora algo da mesma ordem tenha ocorrido na obra dos grandes romancistas do começo do século XX, como Joyce, Faulkner e Virginia Woolf, a narrativa de Voyage...
percorre via própria, e as eventuais semelhanças se originam menos de uma influência
direta daqueles autores sobre Céline do que do caráter comum das experiências históricas
sedimentadas nas obras, que, sob olhar panorâmico, condicionaram a crise do realismo e o
advento de um novo tipo de romance.
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*
*Mestrando do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP, bolsita do CNPq
Dissertação aqui:

http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-14012013-120819/pt-br.php.