(Cartas de Cárcere para Lucette Destouches e Maître Mikkelsen, 1945-1947.)
Eis o caso. Em Dezembro de 1945, em Copenhague (legalmente vieram da Alemanha em março, munidos dum Passaporte Alemão), Céline e sua esposa foram detidos pela polícia dinamarquesa. Um mandado, por Traição, foi lançado contra ele em Paris, em Abril, pouco antes da entrada das tropas francesas em Sigmaringen, onde, alguns meses antes, o escritor, sua esposa e seu gato Bébert uniram-se aos oficias do governo de Vichy e as milícias alemãs que haviam sido tomadas com o Marechal Petáin em sua derrocada no Agosto de 1944. Lucette foi libertada ao fim de dez dias.
Deixaram Montmartre, lugar em que viviam, no 17 de Junho de 1944, com a intenção de buscar refúgio na Dinamarca, onde Céline havia confiado suas reservas de ouro para um amigo. Antes da Guerra, ele converteu grande parte de seus direitos autorais em peças de ouro. Em 1942, foi à Berlin para entregar ao seu amigo a chave de seu cofre, que estava num banco dinamarquês. A posse de ouro por um estrangeiro era ilegal aos olhos das autoridades da Ocupação Alemã. Céline, então, "escondeu" seu ouro dos olhos alemães. Essas reservas de ouro foram chamadas de "crianças" em suas cartas, quando discutia sobre o assunto. Constitui, ao mesmo tempo que é essencial para sua sobrevivência, um segredo que o coloca dependente de seus agentes. Um deles é o Sr. Mikkelsen, que Céline tomou como advogado em 16 de maio de 1945, a fim de obter uma autorização para residir na Dinamarca, depois que o país foi libertado dos alemães por tropas inglesas.
França, naquele ano de 1945, a apuração do caso seguia em curso. Robert Brasillach é julgado e fuzilado; Pierre Drieu La Rochelle comete suicídio; o editor de Céline, Robert Denoel, foi assassinado nas ruas de Paris, por um desconhecido - o caso nunca foi esclarecido. Entre os líderes da colaboração, Philippe Pétain, voluntariamente voltou para a França, foi julgado e condenado à morte, Pierre Laval foi julgado e executado, o líder da milícia, Joseph Darnand, também; Marcel Deat e Abel Bonnard são condenados à morte por desobediência às autoridades.
BATALHA JURÍDICA
A presença ilegal de Céline em Copenhage foi denunciada por um informante anônimo. Sua prisão demandada ao governo dinamarquês por M. de Charbonniére, ministro Plenipotenciário da legação francesa na Dinamarca. Um pedido de extradição foi apresentado no dia seguinte. Toda a batalha jurídica vai avançar em torno das cargas contra Céline. Traição. Ajuda ao inimigo, anti-semitismo. Os dois primeiros podem levar à pena de morte. O anti-semitismo não. Céline então dita sua defesa ao Sr. Mikkelsen: ele jamais traiu seu país; pelo contrário, ele se envolveu em duas guerras; ele nunca colaborou com os alemães. A extradição iria entregá-lo aos torturadores, que o executariam sem julgamento algum - a depuração era um novo Terror. Paro o Anti-semitismo, é claro, ele escreveu panfletos patrióticos que clamavam, com uma certa veia "Rabelaisca", os judeus empurrados à uma nova guerra com a Alemanha; que não é a Alemanha que ele defendia - esta nova Alemanha ele odiava - mas sim seu país, que por meio do escritor, como ele tinha feito na primeira guerra, o deixou inválido em 3/4. Ele nunca pediu a morte de ninguém. Ele é inocente. Sua prisão foi uma injustiça. Um longo calvário imposto a um velho homem maldito por quadrilhas de escritores invejosos de seu gênio. Isto é tudo.
E eis, fora dessas cartas, o epílogo judicial: a Dinamarca acabou por recusar a extradição; Céline permanece encarcerado por um ano e meio em condições difíceis, trabalhando na enfermaria da prisão e em seguida no hospital, antes de ser libertado em junho de 1947, sob a promessa de não mais deixar a Dinamarca. Em fevereiro de 1950 ele foi julgado em Paris, na sua ausência. Assistido por seus dois advogados franceses Maître Naud e Tixier-Vignancour, ele apresentou sua defesa através de cartas enviadas diretamente para o Presidente do Tribunal de Justiça. Ele então é condenado a um ano de prisão, uma multa de 50,000 francos, degradação nacional, e seus atuais e futuros bens são confiscados pela metade. Essa condenação é confirmada mas depois perdoada em abril de 1951 pelo tribunal militar, levando em conta que Céline é um combatente veterano de 1914-1918. Em Julho de 1951 Céline e Lucette retornam a Paris. Sem ter entendido nada. A relação entre seus escritos anti-semitas e o genocídio sofrido pelos judeus, Céline nem sequer vislumbrava isso. O lugar da literatura, para ele, é fora da jurisdição. Os escritos não se vinculam à pessoa, e ele não foi o mentor do anti-semitismo. Inocente, portanto, jamais. E vítima, sempre. Mas quem fará justiça em seus livros...
O debate sobre a irresponsabilidade transcendental do grande escritor, logo tornou-se um foco clássico em referência à Céline, e essas cartas de cárcere não têm grande valor literário - ao contrário, são as cartas enviadas, retificadas pela admiração que ele as dedica, ao seu editor Gaston Gallimard, que lançam uma vertiginosa comédia. Na Dinamarca, sob o olhar da administração, escreve um Céline deitado, entregue ao seu "choramingar" ( a palavra é sua, e que a julgar pelo tom de suas cartas que pedem perdão, por si só são soluços) um pobre rapaz propenso a explosões de ódio racial, com suas inspiradas declarações de amor à esposa, interrompidas por suspiros de reprimenda quando ela desperdiça infantilmente seu dinheiro, enfurecido quando tocam em seu ouro, remoendo sua defesa na qual ninguém acredita. O calvário, desta vez, são os celinianos que ele espera. Eles vão ter que ler esta correspondência que François Gibault já tinha lido e resumido no III Tomo de sua biografia, que ele edita com a precisão de um historiador e o zelo de um advogado aristocrata, que anuncia na primeira frase do seu prefácio: " Logo que está atrás das grades, todo homem digno de nome sonha com a fuga" Céline, conquanto, imagina sua fuga em " Féerie pour une autre fois". Mentir, fabular, andar em marcha.