segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Céline imagina o ínicio e o fim de uma adaptação para cinema de Voyage au bout de la nuit:



(texto extraído da entrevista feita em 1° de Junho de 1961, por J. Darribehaude)


Bem, aqui está você. 14 de julho. Estamos na avenue du Bois. E aqui temos três parisienses um tanto atrevidas. Damas do tempo - tempo de Gyp. Aí então, pelo amor de Deus, nós ouvimos o que elas estão dizendo. E ao longo da avenue du Bois, ao longo da allée cavaliere, passa um general, seu aide de camp formando na retaguarda, a cavalo, é claro, a cavalo. Aí a primeira das damas, pelo amor de Deus, "Oh, veja só, é o general de Boisrobert, você viu?". "Sim, vi." "Ele acenou para mim, não?" "Sim, sim, acenou para você. Eu não o reconheci. Não estou realmente interessada, você sabe." "Mas o aide de camp é o pequeno Boilepere, oh, ele estava lá ontem, ele é impossível, não demonstre que você viu alguma coisa, não olhe, não olhe. Ele estava nos contando dos grandes exercícios em Mourmelon, você sabe! Oh, ele disse, isso significa guerra, eu vou partir, estou indo. " Ele é impossível, não é, com sua guerra... "
Daí você ouve música a distância, música de guerra, troando.     "Você acha mesmo, de verdade?"
"Oh. sim. querida, eles são impossíveis, com essa tal guerra. Esses desfiles militares à noite, o que você acha que eles se parecem? É lúdrico, é uma comédia. Da última vez. em Longchamps, vi todos aqueles soldados com caçarolas na cabeça, uma espécie de capacete, você não acreditaria, é tão feio, isso é o que eles chamam de guerra, fazer todos eles parecerem feios. Ê ridículo, na minha opinião, muito ridículo. Sim, sim, sim, ridículo. Oh, olhe, é o attaché, a Embaixada da Espanha. Ele também está falando de guerra, querida, é tão estarrecedor, oh, de verdade, estou tão cansada disso, faríamos muito melhor em ir a uma caçada e matar faisões. As guerras hoje em dia são ridículas, Deus do céu, é impensável, simplesmente não dá mais para se acreditar nelas. Eles cantam aquelas estúpidas canções, não mesmo, como Maurice Chevalier, na verdade ele é bem engraçado, faz todo mundo rir."
Então aí está você, sim, isso é tudo.
"Oh, eu gostaria muito mais de falar do carnaval das flores, sim, o carnaval das flores, estava tão bonito, tão encantador em todos os lugares! Mas agora eles estão indo para a guerra, tão estúpido, não é, é realmente impossível, não pode durar."
Bom, ótimo, aí temos uma pequena peça para começar, estamos na guerra. Bom. Nesse ponto você pode ir a Paris e mostrar um ônibus, há uma porção de planos formidáveis, um ônibus indo em direção ao Carrefour Drouot, num ponto o ônibus se põe a galopar, é engraçado de se ver, o ônibus de três cavalos da linha Madeleine-Bastille, sim, filme essa tomada lá. Bom, certo. Nesse ponto você sai para o campo. Use as paisagens de Voyage. Você vai ter que ler Voyage de novo - que aborrecimento para você. Vai ter que encontrar coisas no Voyage que ainda existem. A passage Choiseul, certamente você vai poder usar essa. E haverá Epinay, a subida para Epinay, essa ainda vai estar ali para você. Suresnes, pode usar essa também, embora já não seja como antes... E você pode filmar as Tulherias, e a Praça Louvois, a ruazinha, precisa dar uma olhada nisso, ver o que se encaixa nas suas idéias.
Aí há a mobilização. Muito bem. Nesse ponto você começa a Voyage. Aí é quando os heróis de Voyage partem para a guerra - trecho do grande filme. Vai precisar de um bocado de grana para isso...
Então o fim.
Estou lhe dando uma passagem de sonho aqui, então talvez você possa mostrar um pouco do interior do Meuse, aliás, foi ali que eu comecei na guerra, um pouco de Flandres, bom, excelente, você só precisa olhar para isso, é bastante evocativo, e aí, bem suavemente, começa a deixar o  ruído das armas ir subindo. O modo como se sabia da guerra, o modo como as pessoas de 14 sabiam da guerra era o tiroteio, de ambos os lados. Era um BLOM BELOLOM BELOM retumbante, era um moinho, demolindo a nossa época. Quer dizer, você tinha a linha de fogo ali na sua frente, era ali que você ia ser varrido do mapa, era onde todos eles morriam. É, e o que você devia fazer era subir até lá com a sua baioneta. Mas para a maior parte isso significava tiros e chamas. Primeiro os tiros, daí o fogo. Cidades pegando fogo, tudo pegando fogo. Primeiro os tiros, daí a carnificina.
Mostre isso da melhor maneira que puder, é problema seu, resolva-o. Estou confiando no pequeno Descaves, ali. Você precisa de música para acompanhar o som das armas. Uma espécie de música sinistra, uma espécie de música profunda, wagneriana, ele pode conseguir isso nas bibliotecas de música. Música que se encaixa em tudo. Bem poucas falas. Bem poucas palavras. Mesmo para a grande cena, mesmo para os trezentos milhões. Tiroteio. BELOMBELOLOMBOM, tactactac. Metralhadoras - eles já as tinham então. Do mar do Norte à Suíça havia uma faixa de quatrocentos e cinqüenta quilômetros que nunca parou de mascar homens de um lado para o outro. Sim, ah, sim, assim que um cara chegava lá, dizia: Então é aqui que acontece, é aqui que é a matança, é? Foi ali que todos nós nos massacramos uns aos outros. Não era sonho, aquilo! Um milhão e setecentos mil morreram bem ali. Mais do que uns poucos. Com retiradas, ofensivas, retiradas, cada vez mais estrondosos BOBOOMS, armas grandes, armas pequenas, não muitos aviões, não, você pode mostrar um avião vagamente, mas não havia muitos, não, o que nos aterrorizava era o tiroteio, puro e simples. Os alemães tinham grandes armas e foram uma grande surpresa, pois o exército francês, os 105, nós não tínhamos nenhuma. Certo. E bicicletas que você dobrava ao meio e guardava.

Então, para terminar a sua história, Voyage, veja, termina, bem, termina da melhor maneira possível, hein, mas ainda, há um fim, uma conclusão, uma assinatura depois de Voyage, uma realmente igual à vida. O livro termina em linguagem filosófica, o livro sim, mas não o filme. Aqui é como é para o filme. Esta é uma maneira como eu vi o fim, assim: Há um camarada velho - penso nele como Simão - que cuida do cemitério, o cemitério militar. Bem, ele está velho agora, tem setenta anos, está acabado. E o diretor do cemitério militar, o curador, é um homem moço e fê-lo saber que é hora de ele se aposentar. Ah, de qualquer modo, é o que eu mais queria, não posso mais andar por aí. Porque você entende, construíram-lhe uma pequena cabana, não longe de Verdun, você sabe, uma cabana, então essa cabana, essa espécie de cabana Nissen, ele a transformou num pequeno bar ao mesmo tempo, e tem um gramofone, mas, de verdade, um gramofone da época, sim! Então, nesse bar, ele serve bebidas às pessoas e fala, sabe, conta a sua história, conta-a para um monte de pessoas, e você vê o bar, e gente entrando, muita gente costumava vir, e não vem mais, para visitar os túmulos dos seus queridos desaparecidos, mas depois de todas essas tumbas dos queridos desaparecidos ele se sente bastante velho, hein, e lhe custa um bocado de trabalho chegar até lá, tanto trabalho que ele não vai mais, ele mesmo, porque diz: Estou velho demais, eu não posso, não posso me mexer. Andar três quilômetros por cima daqueles sulcos, trabalho desgraçado demais, é, impossível, eu voltaria morto, voltaria mesmo, estou acabado, acabado, estou sim. E tem uma chance de dizer isso porque o diretor do cemitério encontrou alguém para ficar no seu lugar. E quem é esse alguém que vai ficar no seu lugar? Eu lhe digo É... são armênios. Uma família de armênios. É o pai, a mãe e cinco crianças pequenas. E o que é que eles estão fazendo ali? Bem, tinham ido para a África, como todos os armênios, e tinham sido chutados de lá, e alguém lhes disse que eles podiam ir e se esconder mais ao norte, eles encontrariam um cemitério e um camarada bem a ponto de se aposentar, e eles poderiam ficar com o seu lugar. E, ah. ele diz, isso é ótimo, porque os meninos estão doentes, a África é quente demais para eles, de qualquer modo. Então Simão os abriga. O guarda do cemitério. Está com seu gorro pontudo enfiado na cabeça e tudo mais. Bem, ele diz, você vai ficar com o meu lugar. Não vai ficar bem aquecido, porém. Se quiser fazer um pouco de fogo, há lenha para apanhar, embora a lareira seja apenas um velho fogão para a sua caçarola, e ele diz, eu, eu não posso durar mais, por causa de toda essa correria de cá para lá e de lá para cá. Costumava haver os americanos, nos velhos dias. Ainda há os americanos, também, lá debaixo, você vai ver, vai encontrá-los. .. Bem, vou lhe mostrar o portão pelo qual eles entram, não é longe, nem um quilômetro, mas não consigo mais fazer isso porque ele manca também, entende, ele também manca -, estou ferido, estou, oitenta e cinco por cento incapacitado depois de 14, isso faz uma diferença! Vou morar com a minha irmã. Que grande cadela ela era! Mora em Asnieres! Puta imunda, ela é! Diz que eu tenho que ir, diz que tenho, mas não sei se vou me dar bem com ela, não a vejo faz trinta anos agora, não mesmo, puta imunda ela era, deve ser mais puta do que nunca hoje em dia. Está casada, diz que eles têm um quarto, pode ser, não sei o que vou fazer lá, no entanto, não posso ficar aqui, posso?, não consigo fazer o serviço, não consigo. Não há muitos que o fazem hoje em dia, dois ou três deles ainda vêm, costumava haver muitos, costumavam vir em bandos, nos velhos tempos, em memória deles todos, os franceses e os ingleses, há todos os tipos enterrados ali embaixo, mas você vai ver, como eles me disseram, ah, ponha as cruzes de pé, sim, algumas caíram, é claro que caíram, o tempo faz a sua parte, as cruzes não ficam de pé para sempre, então eu pus as cruzes de pé da melhor maneira que pude durante bastante tempo, mas não vou mais agora, não, não, não dá, tenho que me deitar depois, entende, não posso, e deitar aqui não seria nada agradável, e não tenho ninguém comigo, então os visitantes vêm e, como acontece, uma boa mulher, uma americana, uma americana bastante velha, e ela diz, "Eu quero ver o meu velho amigo John Brown, meu querido tio que morreu, você não o tem por aí?" Ah, ele diz, está tudo nos registros, espere um momento, vou dar uma olhada, sim, vou lhe mostrar o registro, ali, e ele lhe mostra o registro e diz, Eu o guardei bem, está vendo, aí não podem dizer que não fiz isso, hein, agora vamos ver, Brown, Brown, Brown. Ah, sim, sim, sim, sim, sim. Bem, você sabe, está lá no cemitério Fauvettes, por lá, senhora, difícil de achar, é sim. Não, não, por favor, ele por  ali, com sua mulher e filhos, muito interessante, os terrenos são, eles porão tudo em ordem para você; e eu não posso, entende, não posso, eu lhe disse que não posso, não adianta, senhora, e acredite em mim se tentar ir até lá, eh, eh, deixe-me lhe dizer, encontrar onde ele está muito bem lá, no meu registro, mas já faz um longo tempo desde que fui dar uma olhada nele, no americano, é um caminho longo, dois quilômetros e meio pelo menos, não, não, deixe que eles façam, eles o farão. Posso lhe servir o que há, entretanto, suco de romã, limão. Ah, gostaria de uma xícara de café, ah, certamente, não se pode dizer não a uma xícara de café, vou lhe preparar uma xícara de café.                                            E ele lhe prepara uma xícara de café, está me entendendo, ele tem um faro para senhoras ricas. Bem, diz, está vendo, minha irmã, lá em Asnieres, aqui está o café, aceita um cafezinho? Sabe, isso me lembra, não tenho certeza se ela sabe como prepará-lo. Uma rameira, ela é, eu mesmo o digo. Eh, eu não sei o que vou fazer, não sei, no entanto, tenho que ir, tenho realmente que ir. Então aí está. Sim. Estou indo. Sim, estou mesmo indo, vou deixá-la com eles. Não tenha medo, agora (os outros estão começando a parecer assustados). Ah, não é muito aconchegante aqui, mas é só pôr alguma lenha e isso se aquece, isso não é problema. Ah, você vai ver, não é brincadeira, por aqui. Que tal um pouco de música. Ah, era bom, o gramofone que havia, muito bom, ah, sim, um dos velhos tempos, era, era um... E ele tira fora um de dar corda e eles tocam os discos dos velhos tempos, mas realmente dos velhos tempos, eh "Viens poupoule", "Ma tonkinoise" - aí está, está vendo, é melhor com isso ligado, não é, pode tocá-Ia durante todo o verão, pode sim, isso vai trazê-los para cá de novo, uma vez que tenham varrido um pouco esse lugar, está precisando, hein? Bem, madame, está voltando, é? Indo para  Paris, é? Tem carro? Bem, então, devo dizer, isso seria uma ajuda, ah, seria, imagine só, hein, voltando de carro...

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