segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Bessy de Céline

"A cabeça é como uma fábrica que não funciona muito bem... como você quiser... pensar. Dois mil bilhões de neurônios absolutamente em pleno mistério... você está fresco! neurônios entregues à eles mesmos! você tem um acesso, bate o crânio em qualquer parede e em troca recebe mais ideias! você me envergonha... mas aqui estou eu, do seu lado, e eu quero falar ainda... tabelas, brasões, pilares, tintura! mas eu não sei mais... eu encontrei mais! a cabeça está-me girando... oh! mas espere! eu te encontrarei... você e meu castelo e minha cabeça!... mais tarde... mais além... Lembro-me de uma palavra! eu disse! ... sentido animal... de Bébert!... eu encontrei o fio!... Bébert nosso gato... ah! está voltando... que Bébert está como ele mesmo em um imenso castelo no alto de torres sobre cavernas... ele encontra Lili num corredor ou noutro... eles não se falam... pareciam nunca terem se visto... cada um por si! as ondas animais são assim, um quarto de milímetro fora, você é mais você... você existe mais... um outro mundo! o mesmo mistério com Bessy, minha cadela, mais tarde, na floresta, Dinamarca... ela gargalhava pelos campos... eu chamei... vem!... ela ouviu... e continuava fugindo... e isso é tudo... ela passava, nos esbarrava... dez vezes!... vinte vezes!... como uma flecha!... e a descansar em volta das árvores... as pernas tremelhicavam rápidas... bola de fogo! e então ela poderia acelerar, eu poderia dizer... eu existia mais! portanto uma cadela que eu adorava... ela também... acho que me amava... mas a vida selvagem vem antes... durante duas... três horas... eu contei mais... ela estava em fuga, em fúria dentro do mundo animal... através de florestas, prados, coelhos, veados, patos ... ela vem à mim com as pernas sangrando, carinhosa... ela morreu aqui em Meudon, Bessy, ela está enterrada lá, no jardim, daqui vejo o túmulo... ela sofreu para morrer... eu creio, d'um câncer .. ela queria morrer lá fora... eu segurei sua cabeça... eu beijei ela até o fim... aquela besta era realmente esplêndida... uma alegria de lembrança... uma joia à vibrar... como ela era bonita!... sem defeitos... pelugem, corrida, prumo... oh! ninguém se aproximaria caso houvesse um Concurso!

De fato, penso todos dias nela, mesmo lá com aquela febre... em primeiro lugar eu não consigo me desligar de nada... nem de uma lembrança, nem de uma pessoa, muito menos de uma cadela... eu sou fiel, fiel, responsável... responsável de tudo!... uma verdade maldita.. anti-jean-foutre¹... o mundo que vocês gostam!... os animais são inocentes, até mesmo os fugitivos como a Bessy... eles são cegos juntos aos bandos...

Eu posso dizer que a amei, com suas fulgurantes escapadas, eu não a trocaria por todo o ouro do mundo... não mais do que Bébert, um mal-humorado agressivo dilacerado por gravetos cortantes, um tigre!... mas afetuoso, em alguns momentos... e terrivelmente fiel! atravessamos juntos a Alemanha... fiel como um leão...





Em Meudon, Bessy, eu vi, lamentou ter voltado da Dinamarca... nada de fugir em Meudon!... um cervo não!... talvez um coelho?... talvez? ... eu a levei na floresta de Saint-Cloud... ela pululou um pouco, farejou... em zigue-zague... ela veio quase que imediatamente... dois minutos... nada de correr pelos bosques de Saint-Cloud!... ela continuou caminhando com a gente, mas muito triste... ela era uma cachorra muito robusta! ... nós levávamos uma vida infeliz lá, realmente atroz... muito frio – 25°... e sem nicho algum! por dias... meses... anos... o Báltico tomado...

De repente, com nós, tudo bem... ela passou por tudo!... ela comeu como nós... ela não se importava com o chão onde dormia, ela nunca reclamou... por assim dizer ela comeu em nossos pratos... o mundo nos tornou miseráveis e a ela também... ela sofreu para morrer... eu acabei por tentar amenizar a dor... lhe daria até mesmo um pouco de morfina... mas ela ficaria com medo da seringa... eu nunca queria assustá-la... eu a tinha, na pior das hipóteses, mais uns quinze dias... oh! ela não reclamava... mas eu vi... ela tinha força para enfrentar qualquer dor... ela dormia ao lado da minha cama... um momento, de manhã, ela queria sair... eu queria me alongar sobre a palha... logo após o amanhecer... ela não queria se deitar na palha, se recusou... ela queria estar em outro lugar... do lado mais frio da casa e sobre as rochas... ela esta alongada sobre as rochas belamente... ela começa a gemer... era o fim... eu havia dito, sem acreditar... mas era verdade, ela parece recordar de algo... de onde ela vinha, do Norte, da Dinamarca, o focinho virado para o norte, voltado novamente ao norte... o cão fiel de uma forma, fiel à floresta para a qual sempre fugia, Korsor, lá... fiel à vida atroz que levávamos... os bosques de Meudon lhe dizem algo... ela morreu com dois... três suspiros pequenos... oh, muito discreta em tudo... sem nunca reclamar... por assim dizer... em um posição realmente bela... como em plena corrida, plena fuga... mas por outro lado... abatida, acabada... o nariz virado para a floresta, em fuga... lá onde ela esteve, onde havia sofrido.. Deus sabe!

Oh! Tenho visto muitas agonias... aqui... lá... por todos os lugares... mas de longe são bonitas, discretas... fiéis... e naquela noite a agonia dos homens não passava de um tralala qualquer... o homem é sempre o mesmo em cena... o mais simples..."

Louis-Ferdinand Céline, De Castelo em Castelo, 1957.






1 - Jean-Foutre (Perjorativo) (Ofensivo) (Desprezo): Pessoa incapaz, indigna, moral condenável.

Nenhum comentário:

Postar um comentário