quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Os que morrrerão vos saudam


Contra tudo e contra todos o Dr. Destouches. Inimigo do gênero humano - no fim, além de Lucette Destouches, Céline só se aproximava dos gatos e dos cachorros - e, por incrível que pareça, um médico de profissão. Médico de ambulatório de periferia. A medicina, neste caso, propicia sobretudo a perspectiva do asqueroso. E confirma o sentimento de perseguição. Nas últimas linhas do último romance, a sua gana destruidora aponta para um último perigo: o amarelo. Os chineses, alucina, vão tomar conta de todo o planeta. Por uma feliz coincidência, que os comentaristas não deixam escapar, o fim da nação francesa "bate" com o fim do escritor. De tal forma o catastrofismo celiniano, o antissemitismo, por exemplo, representam um movimento auto-direcionado, uma veia suicidária. Ao terminar "Rigodon", na constatação da invasão da França por hordas de asiáticos, o escritor, pessoalmente, está morrendo.

O resgate da dívida que Céline terá contraído então, na observância quotidiana da blasfêmia, vai ser diretamente proporcional. Mais que à morte vindicativa que lhe impõe, à revelia, um tribunal da Liberação, mais que a condenação à prisão, posteriormente, e a um "estado de indignidade nacional", mais que ao confisco da metade dos seus bens, aquela metade certamente que escapou ao saque da casa de Montmartre... o escritor vai ser condenado à supuração do seu lirismo desandado. Ou, o que talvez signifique o do veneno que secreta, profundamente entranhado.

Céline, em outras palavras, é um condenado à literatura. Entendida como único lugar de se estar. "Que comece a festa!". "Os que morrerão vos saudam!", escreve, nos últimos meses da Ocupação, de dentro de "Féeries pour Une Autre Fois". Antecipando assim o que será o auto-da-fé ultra-ofensivo, o espetáculo histérico do instinto popular. Entregue às feras - dos males o menor para quem está, antes, entregue a si mesmo - mas romanescamente instalado. Essa não seria a primeira vez, em todo caso, nem muito menos a última, em que o escritor estaria, entre frágil e onipotente, em desacordo perfeito com a voz geral.

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