O escritor que Céline mais admirava certamente era Villon (1432, desaparecido em 1463), e ele vê Rabelais na mesma tradição - hostil ao Renascimento que considerava destrutivo. Há certamente um ponto onde se encontram Villon e Rabelais, mas esta visão é um pouco perversa na medida em que desconsidera o entusiasmo de Rabelais para a cultura da Grécia e Roma, cultura desprezada por Céline. Neste texto a seguir ele ressalta que o uso que Rabelais fez da língua francesa de fato não sobreviveu. O que triunfou linguisticamente - que, na sua visão, trouxe resultados terríveis - foi o estilo acadêmico de Amyot, o tradutor de Plutarco que foi admirado por Montaigne e outros de sua geração:
"Rabelais enfiou goela abaixo a língua francesa falada na língua francesa escrita: um erro. Enquanto que Amyot, as pessoas querem e querem Amyot, o gênio do estilo acadêmico, duhamélico¹. É ele, que escreve merda: a linguagem petrificada. As colunas do Figaro², que se orgulha de ter editores que escrevem bem, está abarrotada desses tipos. Le Figaro, é uma cloaca verbal bem afiada, frases bem conduzidas, e com, no final de cada artigo, um pequeno truque pretensioso. Não é perigoso, nem muito forte, para não assustar o público. Da merda real, eu continuo. Rabelais realmente queria uma língua extraordinária e rica. Mas os outros, eles tem a língua castrada, fazem-se duhamélicos, giraldos e maurícios. Então, hoje, escrever bem é escrever como Amyot, mas, veja bem, nunca é uma língua traduzida. Germaine Beaumont disse uma vez, a leitura de um livro: " Ah! como é bom de ler! ainda mais a tradução!" É quem dá o mote. É essa a raiva moderna do Francês: ler as traduções, falar como as traduções. Alguns vieram me perguntar se eu havia tomado uma ou outra passagem de Joyce. Sim, você me pediu! Esta é a época... Porque o inglês, ah, é a moda... Eu falo inglês perfeitamente, como o francês. Vá buscar qualquer coisa de Joyce. Não, eu não falo aquela língua, aquela puta língua me irrita... Como Rabelais, eu encontrei tudo na língua francesa. Lanson (que não era um imbecil), disse: "a língua francesa não é muito artística". Não há poesia na França, tudo é muito cartesiano. Ele evidentemente tem razão. Este é o caso de Amyot, cá... Este é um pré-cartesiano, e assim tudo foi arruinado. Não é o caso de Rabelais: um artista. Rabelais, sim, ele falhou, e Amyot ganhou. A posteridade de Amyot, é tudo Gallimard, todos esses pequenos romances emasculados. Milhares por ano. Mas romances com esses, merda, escrevo em uma hora. No entanto, não serei publicado. Onde está a posteridade de Rabelais? A literatura real? Desapareceu. A razão é clara. Deve-se compreender de uma vez por todas (puritanismo suficiente!) que o Francês é uma língua estritamente vulgar, desde o Tratado de Verdun. Só que não queremos aceitá-la como vulgar e continuamos a desprezar Rabelais. "Ah, é Rabeleiro" às vezes dizem. Quer dizer, né, olha, isso não é difícil, que coisa ... essa falta de correção ... Delicada, delicada ... E o nome de um dos nossos maiores escritores ajudou a moldar um adjetivo difamatório. Monstruoso! Mas era um cara muito forte Rabelais, escritor, médico, advogado, bispo. Ele teve dificuldades , pobre, mesmo em sua vida, ele passou todo o tempo tentando não ser jogado à fogueira. Ele não acreditava muito em Deus, tampouco se atrevia a dizer isso. Além disso, ele não terminou mal: não houve tortura. Isso foi depois, a tortura, quando a academia esquartejou o francês que ele falava (escrevia), para fazer uma literatura de bacharel, patente militar e diploma. Mesmo Balzac não foi em nada ressuscitado. Este á o academicismo baixo, banal! É a vitória da razão. Razão! Devem estar loucos! Nós não podemos fazer nada disso, todos castrados. Eles me fazem rir. Veja o que lhes contraria: nós nunca fomos capazes de fazer "razoavelmente" uma criança. Nada a fazer, é preciso um momento de delírio durante o coito... O bom em Rabelais é que ele colocou sua pele sobre a mesa, ele arriscou. A morte o espreita, ela o inspira! É mesmo a única coisa que inspira. Eu sei quando ela está lá, logo atrás. Quando a morte está brava... Eu tive em minha vida o mesmo defeito de Rabelais. Eu gasto meu tempo a me meter em situações desesperadoras. Eu sou exaustivamente meticuloso com o ódio. Como ele, eu não tenho nada a esperar dos outros. Eu espero só vômito dos outros, da goela em Meudon. O prefeito, todos, querem minha pele. Ainda encontra um monte de cartas sujas na minha caixa de correio. Nas paredes eles também escrevem... Contra Céline, o pornógrafo... "
(Entrevista de Guy Bechtel, 27 de novembro de 1958)
Essas observações contém a essência das reflexões de Céline sobre o uso da linguagem. Emoção vale mais que razão, e naturalidade de expressão mais do que ordem e clareza. O Homem é condenado a morrer e se ele deseja alcançar a grandeza sendo artista, deve trabalhar como um lacaio para o povo. Não há outra maneira.
1- Duhamélico: ADJ M: Relativo ao escritor George Duhamel (1884-1966).
2 Le Figaro, fundado em 1826, ainda sob Charles X, é um influente e importante jornal francês, o mais antigo ainda hoje publicado. Recebeu o nome do personagem de Beaumarchais. Sua sede se encontra no 14, boulevard Haussmann, no 9e arrondissement (bairro) de Paris. É um jornal nacional que faz parte do grupo Socpresse, o primeiro da França no setor de imprensa, grupo inteiramente controlado pelo seu presidente, Serge Dassault, grande industrial francês e senador-prefeito de Corbeil-Essones.
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